A Avenida da Liberdade está repleta, e desta vez não são os carros que entopem a principal artéria de Lisboa. São os burros e os girassóis, os canteiros de salsa e as oliveiras. E gente, milhares de pessoas.
Joana gostou da surpresa da mãe, veio andar de burro pela primeira vez. Hélder trouxe as ovelhas e as cabras de Ourique. Olga só quer ouvir o homem que tem estampado na t-shirt, Tony Carreira. Mas para Augusto, que mal consegue conduzir o táxi, isto é “um pandemónio inconcebível”. A Festa do Campo instalou-se na Avenida da Liberdade, trouxe vacas e porcos pretos.
Cheira a alecrim e a pinhal, e a estrume de vaca. Mas também cheira a pipocas e à carne frita na roulotte do “Pançudo das Bifanas”. Olha-se para o chão e lá está a calçada portuguesa. Não, definitivamente não estamos no campo, mas façamos de conta.
Dos altifalantes sai bem alto a pergunta “mas quem será, mas quem será o pai da criança?” e há quem arrisque um passo de dança, ainda a tarde vai a meio. Não é todos os dias que se baila no alcatrão da avenida sem correr o risco de ser atropelado. Mas é quando se ouve “Passo a vida a sonhar contigo” de Tony Carreira que a avenida rompe num aplauso. O palco já lá está, preparado junto ao Rossio, mas ainda será preciso esperar um pouco para que Tony Carreira apareça mesmo. Para já, a sua voz nos altifalantes dá o mote para o que promete ser um bom final de festa.
Antes de Tony Carreira, é a hora das marmitas, dos panos aos quadrados ou das toalhas de praia estendidos na relva. A organização da Festa do Campo já prometeu que depois arranjará os jardins da avenida e atribuirá 100 mil euros para isso e a recuperação de uma horta em Campolide, garantiu o vereador da Câmara de Lisboa Sá Fernandes. Para já, a avenida está por sua conta, para alegria de quem veio à festa e desagrado de quem, por causa disso, não tem conseguido circular na cidade.
Tractores e alfaias
No cimo da avenida foram “plantados” pequenos pinheiros e um rapaz distribui sementes para que, quem quiser, possa mais tarde plantar os seus. Há tractores e alfaias, instrumentos dos anos 1940 e 1950 que deslumbram aqueles que nasceram muitos anos depois e nunca tinham visto tais ferramentas.
Joana Aires tem 4 anos e está contente. Mora em Oeiras e a sua mãe, Ana Aires, de 35 anos, a acabar a licenciatura em Gestão, deu-lhe hoje uma grande alegria. A mãe e a organização Abrigo do Jumento, que trouxe vários burros para o meio da avenida.
Fita rosa na cabeça, acabada de chegar da aula de ballet, sorriso traquina mas envergonhado, Joana acaba de dar uma volta no burro e garante que não teve medo. Já Inês Aires, de 11 anos, prima de Joana, achou que o bicho estava a mexer-se demais no início do passeio.
Foi há dois dias que Ana Aires começou a preparar tudo. Fez as compras, pôs-se ao fogão a fritar hambúrgueres e convocou a gente mais nova da família. Trouxe as filhas Joana e Catarina (10 anos), e os sobrinhos Inês e Nuno (8 anos). Todos gostaram de andar de burro, afinal só tinham visto póneis e cavalos. “Foi muito giro”, diz Catarina. “O burrinho é muito divertido”, acrescenta Inês. Nuno assustou-se. “Agarrei-me bem para não cair.”
Avenida abaixo, empurram-se carrinhos de bebés, levam-se as crianças pela mão. A Festa do Campo é sobretudo para elas, mas não só. São os mais pequenos quem mais avança para um cesto de ração para pegar numa mão-cheia e dar de comer aos burros. Os mais velhos foram buscar aos armários os chapéus de palha, os calções ou os vestidos de Verão. E a máquina fotográfica, que um porco preto na avenida não é coisa que se possa registar em qualquer dia.
Mais abaixo há carroças. “Parecem cowboys”, diz uma voz de menina. E logo depois os bois que, todos ficam a saber, podem pesar dos 650 quilos a nem mais do que uma tonelada.
Uma cerca de madeira mais adiante protege os porcos pretos, todos muito juntos apesar de ainda terem algum espaço. “Estão todos juntos para não se perderem, que eles não têm telemóvel”, diz outra voz de menina. O pai segura-lhe a mão, ri-se, e explica-lhe que os bichos fugiram todos porque ali é que está sombra. Continuam a descer a avenida, até que outro animal desperta a atenção da criança. “Olha para este”, diz, a apontar para o carneiro de cornos mais retorcidos.Finalmente as galinhas e os patos, mesmo antes das courgettes, dos pepinos, da beringela e dos girassóis. Não é uma visita ao campo, lá está, mas é uma visita do campo em que o aroma a alecrim se mistura com o odor doce das pipocas.
Nas toalhas estendidas na relva trocam-se beijos e sandes, aproveita-se para dois dedos de conversa ou uma sesta enquanto não chega Tony Carreira.
Hélder Alves, de 30 anos, tem ao peito a identificação “produtor”. Veio do Alentejo, de Garvão, uma freguesia no concelho de Ourique, trouxe cabras e ovelhas – 15 cabras de raça algarvia e 20 ovelhas de raça merino branco. Em 2004 fundou a sua empresa de produção de carne, depois de ter acabado o curso de Engenharia Zootécnica na Universidade de Évora, e agora veio a Lisboa promover os seus animais e incentivar o consumo do produto nacional, que é também esse o objectivo desta festa. “Nos dias em que vivemos é importante investir na produção nacional”, diz. “Temos de investir no que é nosso, e temos capacidade para isso”.
Um “pandemónio” na avenida
A avenida vai enchendo com o passar das horas, e há quem decida ajudar o próximo enquanto espera e entre para dar sangue na unidade móvel. Com tantos cheiros que se cruzam, hoje, excepcionalmente, não cheira a gasolina.
Os carros não passam e isso transtornou o trabalho de muita gente. O de Augusto Sebastião, por exemplo, um taxista de 60 anos que acha a festa na avenida “uma fantochada”. Não a festa, que essa até pode ser divertida. “Mas com tantos terrenos e tantos locais, desde Monsanto ao Parque da Bela Vista, isto tinha de ser logo aqui?”
Em mais de 20 anos ao volante de um táxi, Augusto Sebastião nunca tinha visto este “pandemónio”, que já se prolonga desde quinta-feira. “É que os clientes têm pressa”, explica. “Agora é sábado e há uma décima parte dos carros, mas na quinta-feira fugi logo daqui. A câmara deve ter recebido muito dinheiro e os interesses monetários é que movimentam tudo”.
Mãos dadas, Olga e João Polónia já vêm do Rossio. Ela de 42 anos, ele 47, percorreram a avenida de manhã e pararam depois para almoçar e ir até ao Chiado, que não é coisa que façam todos os dias. Vivem na Amadora, nem sempre têm tempo para passear em Lisboa, mas hoje vieram e a t-shirt dela responde porquê. Tony Carreira, pois claro, estampado sobre o branco.
Os dois estão a gostar da festa. “É bom para as crianças, e para a produção nacional”, diz ela. Produção à parte, já viu Tony Carreira no Parque Eduardo VII no ano passado, e no Pavilhão Atlântico também. “É uma festa divertida e bonita”, conta ela. “Gostei de ver as oliveiras”, diz ele. “Parece a nossa terra em Abrantes”.
Ainda que tenham chegado bem cedo, nem Olga nem João têm vontade de partir, não para já. O entusiasmo dela não lhe permitiria arredar pé. “Até o Tony acabar de cantar.”
fotos: Daniel Rocha
publicado em O Público
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