Entre dois mundos
Criador de uma escola revolucionária, o povo baniua, do noroeste do Amazonas, dá um exemplo de relação indígena civilizada e produtiva com a sociedade moderna.
Por Eduardo Petta
Foto de Carolina da Riva
Foto de Carolina da Riva
A aldeia Tucumã está em polvorosa. As três casas de farinha produzem a pleno vapor. Peixes moqueados assam nas grelhas suspensas. O trapiche da prainha do Içana está repleto de canoas, e meninos refrescam-se do calor com mergulhos no rio. Perto dali, reunidas em assembleia, as lideranças baniua decidem os próximos passos da tribo. Na maloca cercada pela floresta, quase 100 homens dividem a palavra, entre eles capitães de comunidades, veteranos e atuais estudantes da Escola Pamáali, o moderno centro de ensino projetado pelos próprios baniua em 2000. Os jovens apresentam ideias de pesquisas e projetam slides e tabelas de Excel no telão improvisado com um lençol branco - parafernália eletrônica alimentada por um barulhento gerador chinês. As discussões da Organização Indígena da Bacia do Içana (Oibi) são as mais variadas: o manejo das espécies de peixe, o fornecimento de sua cestaria milenar a uma rede de lojas de São Paulo, um possível contrato com uma grande indústria de cosméticos.
Em outras palavras: sustentabilidade, negócios, novos mercados - parece a pauta de uma reunião executiva em São Paulo. Os baniua, contudo, são habitantes ancestrais de um dos lugares mais remotos do planeta. Curiosos por tecnologia, hábeis comerciantes e politizados, eles projetam-se como protagonistas de um modo de vida moderno entre as etnias que habitam o vasto universo de florestas intactas, rios caudalosos e montanhas da região conhecida como Cabeça do Cachorro, no Amazonas. Inteiramente demarcada por reservas, a Cabeça do Cachorro é uma espécie de país indígena cuja capital é São Gabriel da Cachoeira, às margens do rio Negro. Um número simples dá conta dessa singular sociedade civil: 90% da população da cidade tem sangue nativo. Em janeiro - já não era sem tempo -, pela primeira vez uma dupla de índios tomou posse na prefeitura local. O novo prefeito, Pedro Garcia, é tariano. Seu vice é André Fernando, um baniua de Tucumã.
Essa aldeia modelo é uma das 70 comunidades da etnia ao longo do Içana brasileiro. No total, os baniua, que se autodenominam walimanai ("os outros que vão nascer"), são estimados em 17 mil indivíduos. A maior parte deles vive na Colômbia, e uma minoria na Venezuela. No Brasil, são cerca de 6 mil, distribuídos por toda a bacia do Içana e seus afluentes e pelo centro urbano de São Gabriel. Adaptados ao solo ácido e de baixa fertilidade dessa porção da Amazônia, onde se concentram extensas faixas de campinaranas - uma floresta baixa, arbustiva -, os baniua sobrevivem graças a antigas técnicas de cultivo de roça (sobretudo da mandioca-brava), caça, pesca e uma rede de trocas com outras etnias. E, hoje, com o comércio de seu artesanato.
A jornada pela qual se escoa a produção é hercúlea. Ofício masculino por tradição, a cestaria de arumã (a planta da qual se extrai a fibra matriz do artesanato baniua) é escoada Içana abaixo numa canoa longa, o bongo. A cada cachoeira do Içana - são pelo menos dez -, os belos jarros, balaios e peneiras são descarregados, e o bongo precisa ser arrastado pelas pedras. Ao chegar a São Gabriel, a mercadoria roda 30 quilômetros até o porto de Camanaus, onde é embarcada numa viagem de mil quilômetros, ou três dias, pelo rio Negro com destino a Manaus. De lá, entra numa balsa até Belém (mais 1,5 mil quilômetro) e num caminhão para São Paulo (outros 2,1 mil), onde é comercializada. Muitas peças podem seguir depois para o exterior de avião. Detalhe: os baniua já aceitam pedidos pela internet.
O futuro desembarcou em um local sagrado da Amazônia. Em Tucumã fica o igarapé Pamáali, "a morada das flautas e trombetas sagradas", objetos de importância central no xamanismo do grupo - para mulheres e não-iniciados, é proibido ver os instrumentos sagrados, sob pena de morte. Não por acaso, era em Tucumã que sempre aconteciam grandes reuniões dos clãs, regadas a muito caxiri, a bebida fermentada feita da mandioca.
Em outras palavras: sustentabilidade, negócios, novos mercados - parece a pauta de uma reunião executiva em São Paulo. Os baniua, contudo, são habitantes ancestrais de um dos lugares mais remotos do planeta. Curiosos por tecnologia, hábeis comerciantes e politizados, eles projetam-se como protagonistas de um modo de vida moderno entre as etnias que habitam o vasto universo de florestas intactas, rios caudalosos e montanhas da região conhecida como Cabeça do Cachorro, no Amazonas. Inteiramente demarcada por reservas, a Cabeça do Cachorro é uma espécie de país indígena cuja capital é São Gabriel da Cachoeira, às margens do rio Negro. Um número simples dá conta dessa singular sociedade civil: 90% da população da cidade tem sangue nativo. Em janeiro - já não era sem tempo -, pela primeira vez uma dupla de índios tomou posse na prefeitura local. O novo prefeito, Pedro Garcia, é tariano. Seu vice é André Fernando, um baniua de Tucumã.
Essa aldeia modelo é uma das 70 comunidades da etnia ao longo do Içana brasileiro. No total, os baniua, que se autodenominam walimanai ("os outros que vão nascer"), são estimados em 17 mil indivíduos. A maior parte deles vive na Colômbia, e uma minoria na Venezuela. No Brasil, são cerca de 6 mil, distribuídos por toda a bacia do Içana e seus afluentes e pelo centro urbano de São Gabriel. Adaptados ao solo ácido e de baixa fertilidade dessa porção da Amazônia, onde se concentram extensas faixas de campinaranas - uma floresta baixa, arbustiva -, os baniua sobrevivem graças a antigas técnicas de cultivo de roça (sobretudo da mandioca-brava), caça, pesca e uma rede de trocas com outras etnias. E, hoje, com o comércio de seu artesanato.
A jornada pela qual se escoa a produção é hercúlea. Ofício masculino por tradição, a cestaria de arumã (a planta da qual se extrai a fibra matriz do artesanato baniua) é escoada Içana abaixo numa canoa longa, o bongo. A cada cachoeira do Içana - são pelo menos dez -, os belos jarros, balaios e peneiras são descarregados, e o bongo precisa ser arrastado pelas pedras. Ao chegar a São Gabriel, a mercadoria roda 30 quilômetros até o porto de Camanaus, onde é embarcada numa viagem de mil quilômetros, ou três dias, pelo rio Negro com destino a Manaus. De lá, entra numa balsa até Belém (mais 1,5 mil quilômetro) e num caminhão para São Paulo (outros 2,1 mil), onde é comercializada. Muitas peças podem seguir depois para o exterior de avião. Detalhe: os baniua já aceitam pedidos pela internet.
O futuro desembarcou em um local sagrado da Amazônia. Em Tucumã fica o igarapé Pamáali, "a morada das flautas e trombetas sagradas", objetos de importância central no xamanismo do grupo - para mulheres e não-iniciados, é proibido ver os instrumentos sagrados, sob pena de morte. Não por acaso, era em Tucumã que sempre aconteciam grandes reuniões dos clãs, regadas a muito caxiri, a bebida fermentada feita da mandioca.
Tais eventos, porém, foram sendo condenados com a crescente adoção dos baniua ao credo evangélico, cujos cultos chegam a reunir quase 2 mil pessoas de diversas aldeias entoando a Bíblia no coração da Floresta Amazônica. A conversão começou no fim da década de 1940, com a chegada da missionária norte-americana Sophie Muller. Vinda da Colômbia e identificada como um messias por muitos baniua do Içana, Sophie convenceu os indígenas a jogar seus apetrechos cerimoniais no rio e expôs as flautas sagradas às mulheres. Rompeu assim com ritos de iniciação da tribo e a evangelizou. Sua palavra, apesar de não ser unânime, perdura. "A dimensão dessa nova religiosidade é latente na maioria das comunidades, mas acabou por fortalecer as organizações entre os índios e seu contato com o mundo externo", avalia o ecólogo Adeílson Lopes da Silva, que vive entre os baniua há três anos.
Um contraponto leigo para a fé evangélica parece estar no grande projeto da vida dos baniua, a Escola Pamáali. O projeto teve início em 1998, ano em que o governo federal reconheceu os direitos dos povos indígenas do alto e médio rio Negro, demarcando um conjunto de cinco terras contínuas com 10,6 milhões de hectares, entre elas as áreas de ocupações tradicionais dos baniua. Com o auxílio do Instituto Socioambiental e da Foirn, os baniua firmaram parceria com uma instituição da Noruega para arregimentar verbas e inaugurar a escola, cujo conceito pedagógico prega a valorização das raízes linguísticas. "Precisávamos alfabetizar e ensinar em baniua. A dificuldade de nossas crianças de aprender a ler e a escrever em português era enorme", explica Juvêncio Cardoso, coordenador da Pamáali. Em nove anos, a escola formou mais de 80 professores, preencheu prateleiras com pesquisas e deu vida aos primeiros livros para alfabetização e sobre tradições em Baniua. "Até então, a única obra traduzida na nossa língua era a Bíblia", afirma Juvêncio.
Vindos das diversas comunidades da bacia do Içana, os 70 alunos (apenas baniua ou curipaco) que a escola recebe por ano, sem pré-requisito de sexo ou idade, permanecem na Pamáali em regime de internato. São três bimestres por ano, sempre com um intervalo de dois meses, período em que regressam às aldeias para processar as pesquisas e divulgar o conhecimento adquirido. São aulas de português, matemática, ciências, informática - nas quais os alunos atualizam e-mails e acessam a internet graças a uma antena via satélite. Estudam, ainda, história e geografia, complementadas com o conhecimento transmitido pelos mais velhos sobre o patrimônio cultural do povo. "Estamos reconhecendo os saberes antigos da agricultura fundamentados no calendário astronômico, recuperando cantos, lendas e rituais. E reaprendendo os segredos das plantas medicinais, das árvores e dos animais", conta o aluno Elton José, 19 anos, há três na escola. "O pé no passado é importante para que possamos seguir em frente", avalia o vice-prefeito André Fernando. "Foram dois séculos de contato avassalador com os brancos. Sofremos escravidão no período da exploração da borracha e depois uma forte opressão em nossas crenças pelos padres salesianos, seguida da invasão evangélica. Tudo isso quase acabou com a sabedoria das nossas tradições."
A agenda diária dos estudantes reserva certos horários do dia para atividades tradicionais da tribo. "Os homens saem para pescar, abrir roçados, apanhar lenha e produzir cestaria. Já as mulheres vão para a roça, colher mandioca, pimenta, fazer farinha, preparar o almoço", conta o baniua Benjamin Ray, que, além de professor de informática, acumula os cargos de jornalista, fotógrafo e blogueiro da escola.
O sucesso da Pamáali fez com que, em 2008, a secretaria de Educação de São Gabriel da Cachoeira transformasse o método de alfabetização em língua materna como política pública do município. A ideia é expandi-lo a todas as escolas indígenas do país - são mais de 178 mil estudantes índios matriculados em 2 517 escolas especiais em 24 estados. "A Pamáali está provando ao meu povo a importância de nos conectarmos com o mundo globalizado sem nunca perder de vista nossa identidade cultural", afirma André.
De fato, os baniua descobriram o Google, e sem abrir mão da vida na floresta. O equilíbrio entre essas duas experiências tão contrastantes pode ser sua grande lição para o mundo
Um contraponto leigo para a fé evangélica parece estar no grande projeto da vida dos baniua, a Escola Pamáali. O projeto teve início em 1998, ano em que o governo federal reconheceu os direitos dos povos indígenas do alto e médio rio Negro, demarcando um conjunto de cinco terras contínuas com 10,6 milhões de hectares, entre elas as áreas de ocupações tradicionais dos baniua. Com o auxílio do Instituto Socioambiental e da Foirn, os baniua firmaram parceria com uma instituição da Noruega para arregimentar verbas e inaugurar a escola, cujo conceito pedagógico prega a valorização das raízes linguísticas. "Precisávamos alfabetizar e ensinar em baniua. A dificuldade de nossas crianças de aprender a ler e a escrever em português era enorme", explica Juvêncio Cardoso, coordenador da Pamáali. Em nove anos, a escola formou mais de 80 professores, preencheu prateleiras com pesquisas e deu vida aos primeiros livros para alfabetização e sobre tradições em Baniua. "Até então, a única obra traduzida na nossa língua era a Bíblia", afirma Juvêncio.
Vindos das diversas comunidades da bacia do Içana, os 70 alunos (apenas baniua ou curipaco) que a escola recebe por ano, sem pré-requisito de sexo ou idade, permanecem na Pamáali em regime de internato. São três bimestres por ano, sempre com um intervalo de dois meses, período em que regressam às aldeias para processar as pesquisas e divulgar o conhecimento adquirido. São aulas de português, matemática, ciências, informática - nas quais os alunos atualizam e-mails e acessam a internet graças a uma antena via satélite. Estudam, ainda, história e geografia, complementadas com o conhecimento transmitido pelos mais velhos sobre o patrimônio cultural do povo. "Estamos reconhecendo os saberes antigos da agricultura fundamentados no calendário astronômico, recuperando cantos, lendas e rituais. E reaprendendo os segredos das plantas medicinais, das árvores e dos animais", conta o aluno Elton José, 19 anos, há três na escola. "O pé no passado é importante para que possamos seguir em frente", avalia o vice-prefeito André Fernando. "Foram dois séculos de contato avassalador com os brancos. Sofremos escravidão no período da exploração da borracha e depois uma forte opressão em nossas crenças pelos padres salesianos, seguida da invasão evangélica. Tudo isso quase acabou com a sabedoria das nossas tradições."
A agenda diária dos estudantes reserva certos horários do dia para atividades tradicionais da tribo. "Os homens saem para pescar, abrir roçados, apanhar lenha e produzir cestaria. Já as mulheres vão para a roça, colher mandioca, pimenta, fazer farinha, preparar o almoço", conta o baniua Benjamin Ray, que, além de professor de informática, acumula os cargos de jornalista, fotógrafo e blogueiro da escola.
O sucesso da Pamáali fez com que, em 2008, a secretaria de Educação de São Gabriel da Cachoeira transformasse o método de alfabetização em língua materna como política pública do município. A ideia é expandi-lo a todas as escolas indígenas do país - são mais de 178 mil estudantes índios matriculados em 2 517 escolas especiais em 24 estados. "A Pamáali está provando ao meu povo a importância de nos conectarmos com o mundo globalizado sem nunca perder de vista nossa identidade cultural", afirma André.
De fato, os baniua descobriram o Google, e sem abrir mão da vida na floresta. O equilíbrio entre essas duas experiências tão contrastantes pode ser sua grande lição para o mundo
Entrevista com José Carlos Meirelles
Por Felipe Milanez e Maria Emília Coelho
Foto de Maria Emília Coelho
Foto de Maria Emília Coelho
O sertanista José Carlos Meirelles
A discreta cicatriz entre a barba e a bochecha esquerda concentra um pouco da história do sertanista José Carlos Meirelles dos Reis Júnior. Ele ganhou a marca nas águas do rio Envira, no oeste do Acre, em julho de 2004. Índios isolados lançaram flechas contra Meirelles enquanto ele pescava. Uma delas penetrou em sua face e saiu no pescoço. Meirelles correu. Mas o único tiro que deu com a arma que levava na mão foi para o ar - um grito de socorro para seus funcionários. No posto da Funai, ele pediu resgate ao Exército. Seis meses depois, recuperado, estava de volta à ativa. Não é dos índios, contudo, que vem a ameaça que mais o faz temer. Conflitos ainda piores se anunciam. Com a intensa atividade madeireira no Peru e a chegada de garimpeiros atrás de ouro, algumas etnias estão em fuga no território brasileiro protegido por Meirelles. Dos quatro povos isolados que se estima existirem na região, três foram fotografados em uma expedição aérea de fiscalização realizada há um ano. As imagens rodaram o mundo. Mas pouco se falou sobre as ameaças reais à sobrevivência desses indígenas. Com o aumento da pressão humana em torno das reservas, diz Meirelles, "infelizmente, o destino dos índios isolados não está nas mãos deles".
Quanto tempo ainda os índios isolados vão ter para escolher o momento de iniciar um contato com nossa sociedade?
Depende da pressão que eles sofrem em cada local. No caso da região do rio Envira, onde atuo, espero que ainda haja um bom tempo antes que aconteça esse contato inicial. A pressão sobre eles agora não é mais brasileira, ela vem do Peru, o que gera um problema novo para nós resolvermos. Creio que nestes últimos anos os índios descobriram, no caso particular dos entornos do rio Envira, que nós, da Frente de Proteção Etnoambiental Envira, da Funai, somos vizinhos diferentes daqueles que eles tiveram no passado e que os caçavam. Não nos temem como temiam seringueiros, madeireiros e garimpeiros. Já não mascaram tanto os vestígios quando andam perto de nossas bases, o que não significa, creio, que haja uma intenção de contato. Temos de ficar atentos a pressões externas e aos sinais que esses povos nos dão para que o futuro contato, se ocorrer um dia, seja o menos traumático possível para eles.
Um ano atrás, foram divulgadas fotografias feitas em uma expedição aérea coordenada pelo senhor. Quais são as conclusões desse trabalho?
O principal é que a terra deles foi demarcada sem nenhum problema, como era o nosso objetivo ao realizar o voo de reconhecimento. As fotos são do grupo que vive na cabeceira do rio Humaitá e nos igarapés da margem esquerda do rio Envira, em território brasileiro. Entretanto, outras fotos do mesmo sobrevoo nas quais aparecem duas malocas dos isolados do igarapé Xinane, oriundos do Peru, foram encaminhadas à Funai para pesquisa. Essas malocas não existiam em 2004, quando sobrevoamos a mesma região. A importância da divulgação é que as imagens podem ajudar a proteger esses povos. A opinião pública tem de entender que tais índios existem, e que temos o dever de garantir o direito deles de permanecer isolados.
Uma vez o senhor foi flechado e por pouco não morreu. Como é a aproximação desses indígenas do posto da Funai?
Eu já vi um bocado de índios da etnia masko piro, que andam pelas cabeceiras do Envira no verão. Uma vez a gente se encontrou sem querer pelas praias e eles correram atrás de nós. Outra vez eles apareceram lá mesmo no posto. Foi em 2004. Mais de 100 homens desse grupo invadiram a casa, mexeram em tudo e foram embora. Mas não levaram nada. Além deles, um outro grupo, o que aparece nas fotos divulgadas apontando flechas para o avião, uma vez invadiu a base e colocou fogo nos telhados. Havia dois trabalhadores no local, e eles tiveram de fugir, à noite, de barco. A ordem, quando acontece uma coisa dessas, é que todos no posto partam imediatamente. A gente tem um barco com motor, com combustível, sempre preparado para uma fuga de emergência.
Logo no início da carreira o senhor fez os primeiros contatos com o povo awa-guajá.
Essa história de que é o sertanista que faz o contato com o índio tem de ser revista. Na verdade, é sempre o índio quem faz o contato. É ele que vai até o branco. Chega uma hora em que o território está tão pressionado que eles não têm mais para onde correr. Foi o que aconteceu com o povo awa-guajá, que estava espremido pelos urubu-caapor e guajajara e pelos arrozeiros que não paravam de chegar ao Maranhão. Os awa-guajá do rio Turiassú fizeram contato com um caçador chamado Antônio Raposo, em 1972, e em 1973 conosco, da Funai, nas cabeceiras do Turiassú. Eles estavam acuados.
Quanto tempo ainda os índios isolados vão ter para escolher o momento de iniciar um contato com nossa sociedade?
Depende da pressão que eles sofrem em cada local. No caso da região do rio Envira, onde atuo, espero que ainda haja um bom tempo antes que aconteça esse contato inicial. A pressão sobre eles agora não é mais brasileira, ela vem do Peru, o que gera um problema novo para nós resolvermos. Creio que nestes últimos anos os índios descobriram, no caso particular dos entornos do rio Envira, que nós, da Frente de Proteção Etnoambiental Envira, da Funai, somos vizinhos diferentes daqueles que eles tiveram no passado e que os caçavam. Não nos temem como temiam seringueiros, madeireiros e garimpeiros. Já não mascaram tanto os vestígios quando andam perto de nossas bases, o que não significa, creio, que haja uma intenção de contato. Temos de ficar atentos a pressões externas e aos sinais que esses povos nos dão para que o futuro contato, se ocorrer um dia, seja o menos traumático possível para eles.
Um ano atrás, foram divulgadas fotografias feitas em uma expedição aérea coordenada pelo senhor. Quais são as conclusões desse trabalho?
O principal é que a terra deles foi demarcada sem nenhum problema, como era o nosso objetivo ao realizar o voo de reconhecimento. As fotos são do grupo que vive na cabeceira do rio Humaitá e nos igarapés da margem esquerda do rio Envira, em território brasileiro. Entretanto, outras fotos do mesmo sobrevoo nas quais aparecem duas malocas dos isolados do igarapé Xinane, oriundos do Peru, foram encaminhadas à Funai para pesquisa. Essas malocas não existiam em 2004, quando sobrevoamos a mesma região. A importância da divulgação é que as imagens podem ajudar a proteger esses povos. A opinião pública tem de entender que tais índios existem, e que temos o dever de garantir o direito deles de permanecer isolados.
Uma vez o senhor foi flechado e por pouco não morreu. Como é a aproximação desses indígenas do posto da Funai?
Eu já vi um bocado de índios da etnia masko piro, que andam pelas cabeceiras do Envira no verão. Uma vez a gente se encontrou sem querer pelas praias e eles correram atrás de nós. Outra vez eles apareceram lá mesmo no posto. Foi em 2004. Mais de 100 homens desse grupo invadiram a casa, mexeram em tudo e foram embora. Mas não levaram nada. Além deles, um outro grupo, o que aparece nas fotos divulgadas apontando flechas para o avião, uma vez invadiu a base e colocou fogo nos telhados. Havia dois trabalhadores no local, e eles tiveram de fugir, à noite, de barco. A ordem, quando acontece uma coisa dessas, é que todos no posto partam imediatamente. A gente tem um barco com motor, com combustível, sempre preparado para uma fuga de emergência.
Logo no início da carreira o senhor fez os primeiros contatos com o povo awa-guajá.
Essa história de que é o sertanista que faz o contato com o índio tem de ser revista. Na verdade, é sempre o índio quem faz o contato. É ele que vai até o branco. Chega uma hora em que o território está tão pressionado que eles não têm mais para onde correr. Foi o que aconteceu com o povo awa-guajá, que estava espremido pelos urubu-caapor e guajajara e pelos arrozeiros que não paravam de chegar ao Maranhão. Os awa-guajá do rio Turiassú fizeram contato com um caçador chamado Antônio Raposo, em 1972, e em 1973 conosco, da Funai, nas cabeceiras do Turiassú. Eles estavam acuados.
Como se dá a aproximação entre culturas tão diferentes?
O contato é uma coisa maluca. Você está no mato e de repente avista três índios pelados te olhando. A comunicação tem de ser por mímica. Depois, os índios encontram todas aquelas coisas que não existem no universo deles, mexem em tudo... Nunca fomos preparados para lidar com essa situação. Eles sofrem dois impactos depois do contato. Primeiro vem a doença. Até criarem resistência, mais da metade já morreu. Outra violência sobre eles é psicológica: nossa tecnologia muda a vida deles radicalmente. É como dar um pulo de 10 mil anos em uma semana. Muitos grupos têm de repensar a própria cosmologia porque veem que aquilo que o pajé falou não é bem assim. Os awa-guajá pensavam que nuvem fosse fumaça de fogo. Mas depois andaram de avião e viram que a história estava errada.
E como é possível controlar essa situação do pós-contato?
Depois do contato o índio vai se relacionar com o "beiradão", ou seja, aquela gente que vive na beira do rio, na fronteira de colonização, uma terra sem lei: a prostituta, o cachaceiro, o madeireiro, o garimpeiro. Não é com um grupo seleto de antropólogos que ele vai conviver. Não é com o pessoal que faz passeata no Rio de Janeiro a favor da Amazônia, com as moças bonitas de Ipanema. Ele vai descobrir de cara o que há de pior na sociedade, concentrado nessas fronteiras. Por isso, a primeira coisa que se deve dar é tempo pra que se adapte às novidades. Junto a isso tem de vir o cuidado com a saúde, pois os índios não têm resistência às doenças que para nós são corriqueiras.
Como era a situação dos povos indígenas no Acre quando o senhor chegou, nos anos 1970?
Quando ali cheguei, em 1976, vi os índios "trabalhando" como seringueiros para os patrões da borracha, e em alguns lugares ainda se faziam as "correrias" (expedições de caça aos indígenas organizadas por seringalistas). Era um regime de escravidão. Para conseguir reverter essa situação, tivemos de oferecer uma alternativa econômica para eles deixarem os seringais. Criou-se um sistema que operava com cooperativas de trabalho. A ajuda financeira possibilitou que eles se organizassem para lutar por suas terras. No rio Iaco, onde trabalhei com os manchineri e os jaminawa, os índios saíram do seringal Petrópolis e foram para um local que hoje se chama Extrema, onde foi criado um posto da Funai. Fizemos a primeira proposta de demarcação do território deles, que quase dez anos depois foi concretizada na Terra Indigena Mamoadate. Isso aconteceu com a maioria dos índios do Acre até quase todas as reservas serem demarcadas.
Em duas décadas na Frente Envira, o que ainda falta fazer?
Já demarcamos três terras indígenas, a Kampa e Isolados do Rio Envira, a Alto Tarauacá e, no final do ano passado, a Riozinho do Alto Envira. O objetivo daquela expedição aérea era verificar a localização dos índios para que essa demarcação física não passasse perto de suas aldeias. Essas três terras somam mais de 600 mil hectares que se estendem ao longo do paralelo 10 graus, fronteira do Brasil com o Peru. A Frente Envira protege quatro povos isolados. Três de etnias ainda desconhecidas que vivem em território brasileiro. E os masko piro, um povo nômade que circula entre a fronteira do Brasil com o Peru.
Tais povos estão protegidos nesse território?
O problema é que agora a gente não depende só da política do Brasil. A exploração ilegal de madeira na fronteira peruana está provocando um processo de migração forçada de outros grupos para as florestas do Acre. Índios isolados estão vindo do Peru para o Brasil, expulsos pelos madeireiros, cuja mão de obra é indígena. São índios aculturados que matam os isolados na floresta, com bala e chumbo. Os isolados do Peru vêm para o Brasil e encontram índios daqui que são parentes desses que atacam eles lá, como os kampa. Isso gera um conflito territorial.
Há indícios de que a Rodovia Transoceânica, que liga Rio Branco, no Acre, ao litoral peruano, afetará esses indígenas? A rodovia vai, em longo prazo, afetar os indígenas isolados, pois aumentará a pressão e a exploração sobre seus territórios. Pequenos produtores e extrativistas serão deslocados de suas terras e não terão opção senão invadir a terra dos índios isolados à procura de caça, peixe e, principalmente, madeira. Vi esse filme no Maranhão, com a BR-314, que vai de Teresina a Belém. Então, o fim da história é conhecido. Não é a estrada em si, mas seus efeitos colaterais, que não são controlados.
Missões cristãs contataram povos isolados no passado. Como o senhor analisa a presença dos missionários nas aldeias? Missionário contata índio pra salvar sua alma. Não se preocupa com a terra e imbeciliza os índios. O proselitismo religioso é uma das piores pragas que se pode imaginar para os índios. Se as missões e as ONGs querem ajudar os isolados, que entendam que eles devem ter o direito de permanecer isolados, de ter sua religião. Sua alma não precisa de salvamento.
O senhor está aposentado mas segue em atividade. Como serão as novas gerações de sertanistas?
Na Amazônia, está tudo em extinção: a floresta, os índios e os sertanistas. O ultimo curso que a Funai fez para indigenista foi em 1985. Nossa geração está ficando caduca. Quem vai continuar esse trabalho? Nós temos 70 referências de povos isolados no Brasil, trabalhamos em 22 delas, mas as outras precisam ser checadas. Quem saberá andar no mato para ver se o índio passou por ali? Novas tecnologias ajudam, mas não se pode monitorar a área ocupada pelos isolados via satélite ou por avião. Isso demanda um longo processo, anos de andanças na mata. Esse é um dos trabalhos do sertanista e de seu grupo de mateiros. Ainda não somos totalmente descartáveis.
O contato é uma coisa maluca. Você está no mato e de repente avista três índios pelados te olhando. A comunicação tem de ser por mímica. Depois, os índios encontram todas aquelas coisas que não existem no universo deles, mexem em tudo... Nunca fomos preparados para lidar com essa situação. Eles sofrem dois impactos depois do contato. Primeiro vem a doença. Até criarem resistência, mais da metade já morreu. Outra violência sobre eles é psicológica: nossa tecnologia muda a vida deles radicalmente. É como dar um pulo de 10 mil anos em uma semana. Muitos grupos têm de repensar a própria cosmologia porque veem que aquilo que o pajé falou não é bem assim. Os awa-guajá pensavam que nuvem fosse fumaça de fogo. Mas depois andaram de avião e viram que a história estava errada.
E como é possível controlar essa situação do pós-contato?
Depois do contato o índio vai se relacionar com o "beiradão", ou seja, aquela gente que vive na beira do rio, na fronteira de colonização, uma terra sem lei: a prostituta, o cachaceiro, o madeireiro, o garimpeiro. Não é com um grupo seleto de antropólogos que ele vai conviver. Não é com o pessoal que faz passeata no Rio de Janeiro a favor da Amazônia, com as moças bonitas de Ipanema. Ele vai descobrir de cara o que há de pior na sociedade, concentrado nessas fronteiras. Por isso, a primeira coisa que se deve dar é tempo pra que se adapte às novidades. Junto a isso tem de vir o cuidado com a saúde, pois os índios não têm resistência às doenças que para nós são corriqueiras.
Como era a situação dos povos indígenas no Acre quando o senhor chegou, nos anos 1970?
Quando ali cheguei, em 1976, vi os índios "trabalhando" como seringueiros para os patrões da borracha, e em alguns lugares ainda se faziam as "correrias" (expedições de caça aos indígenas organizadas por seringalistas). Era um regime de escravidão. Para conseguir reverter essa situação, tivemos de oferecer uma alternativa econômica para eles deixarem os seringais. Criou-se um sistema que operava com cooperativas de trabalho. A ajuda financeira possibilitou que eles se organizassem para lutar por suas terras. No rio Iaco, onde trabalhei com os manchineri e os jaminawa, os índios saíram do seringal Petrópolis e foram para um local que hoje se chama Extrema, onde foi criado um posto da Funai. Fizemos a primeira proposta de demarcação do território deles, que quase dez anos depois foi concretizada na Terra Indigena Mamoadate. Isso aconteceu com a maioria dos índios do Acre até quase todas as reservas serem demarcadas.
Em duas décadas na Frente Envira, o que ainda falta fazer?
Já demarcamos três terras indígenas, a Kampa e Isolados do Rio Envira, a Alto Tarauacá e, no final do ano passado, a Riozinho do Alto Envira. O objetivo daquela expedição aérea era verificar a localização dos índios para que essa demarcação física não passasse perto de suas aldeias. Essas três terras somam mais de 600 mil hectares que se estendem ao longo do paralelo 10 graus, fronteira do Brasil com o Peru. A Frente Envira protege quatro povos isolados. Três de etnias ainda desconhecidas que vivem em território brasileiro. E os masko piro, um povo nômade que circula entre a fronteira do Brasil com o Peru.
Tais povos estão protegidos nesse território?
O problema é que agora a gente não depende só da política do Brasil. A exploração ilegal de madeira na fronteira peruana está provocando um processo de migração forçada de outros grupos para as florestas do Acre. Índios isolados estão vindo do Peru para o Brasil, expulsos pelos madeireiros, cuja mão de obra é indígena. São índios aculturados que matam os isolados na floresta, com bala e chumbo. Os isolados do Peru vêm para o Brasil e encontram índios daqui que são parentes desses que atacam eles lá, como os kampa. Isso gera um conflito territorial.
Há indícios de que a Rodovia Transoceânica, que liga Rio Branco, no Acre, ao litoral peruano, afetará esses indígenas? A rodovia vai, em longo prazo, afetar os indígenas isolados, pois aumentará a pressão e a exploração sobre seus territórios. Pequenos produtores e extrativistas serão deslocados de suas terras e não terão opção senão invadir a terra dos índios isolados à procura de caça, peixe e, principalmente, madeira. Vi esse filme no Maranhão, com a BR-314, que vai de Teresina a Belém. Então, o fim da história é conhecido. Não é a estrada em si, mas seus efeitos colaterais, que não são controlados.
Missões cristãs contataram povos isolados no passado. Como o senhor analisa a presença dos missionários nas aldeias? Missionário contata índio pra salvar sua alma. Não se preocupa com a terra e imbeciliza os índios. O proselitismo religioso é uma das piores pragas que se pode imaginar para os índios. Se as missões e as ONGs querem ajudar os isolados, que entendam que eles devem ter o direito de permanecer isolados, de ter sua religião. Sua alma não precisa de salvamento.
O senhor está aposentado mas segue em atividade. Como serão as novas gerações de sertanistas?
Na Amazônia, está tudo em extinção: a floresta, os índios e os sertanistas. O ultimo curso que a Funai fez para indigenista foi em 1985. Nossa geração está ficando caduca. Quem vai continuar esse trabalho? Nós temos 70 referências de povos isolados no Brasil, trabalhamos em 22 delas, mas as outras precisam ser checadas. Quem saberá andar no mato para ver se o índio passou por ali? Novas tecnologias ajudam, mas não se pode monitorar a área ocupada pelos isolados via satélite ou por avião. Isso demanda um longo processo, anos de andanças na mata. Esse é um dos trabalhos do sertanista e de seu grupo de mateiros. Ainda não somos totalmente descartáveis.
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