Especial: Línguas indígenas

Lei municipal oficializa línguas indígenas

Estão catalogadas mais de 180 línguas indígenas em uso corrente no Brasil. Mas, pela primeira vez, três delas ganharam a condição de idiomas oficiais, ao lado do português (que é declarado idioma oficial do Brasil pela Constituição Federal). Em um município do Amazonas, São Gabriel da Cachoeira, já vigora uma lei que co-oficializa as línguas Nheengatu, Tukano e Baniwa: a lei 145/2002, aprovada no dia 22/11/2002, que foi proposta pelo vereador indígena Camico Baniwa, a partir de um projeto elaborado pelo Instituto de Investigação e Desenvolvimento de Políticas Lingüísticas (Ipol) a pedido da Federação das Organizações Indigenas do Rio Negro (FOIRN):

São Gabriel da Cachoeira dista 1.601 km a noroeste de Manaus, pelo Rio Negro,
ou apenas 847 km em linha reta


Lei nº. 145 de 11 de dezembro de 2002
 
Dispõe sobre a co-oficialização das Línguas Nheengatu, Tukano e Baniwa, à Língua Portuguesa, no município de São Gabriel da Cachoeira/Estado do Amazonas
 
O Presidente da Câmara Municipal de São Gabriel da Cachoeira/AM
FAÇO saber a todos que a Câmara Municipal de São Gabriel da Cachoeira/Estado do Amazonas decretou a seguinte:
 
LEI:
 
Art. 1°. A língua portuguesa e o idioma oficial da República Federal do Brasil
 
Parágrafo Único - Fica estabelecido que o município de São Gabriel  da Cachoeira/Estado do Amazonas, passa a ter como línguas co-oficiais, as Nheengatu, Tukano e Baniwa.
 
Art. 2°. O status de língua co-oficial concedido por esse objeto, obriga o município:
§1°. A prestar os serviços públicos básicos de atendimento ao público nas repartições públicas na língua oficial e nas três línguas co-oficiais, oralmente e por escrito:
§2°. A produzir a documentação pública, bem como as campanhas publicitárias institucionais na língua oficial e nas três línguas co-oficiais.
§3°. A incentivar a apoiar o aprendizado e o uso das línguas co-oficiais nas escolas e nos meios de comunicações.
Art. 3°. São válidas e eficazes todas as atuações administrativas feitas na língua oficial ou em qualquer das co-oficiais.
Art. 4°. Em nenhum caso alguém pode ser discriminado por razão da língua oficial ou co-oficial que use.
Art. 5°. As pessoas jurídicas devem r também um corpo de tradutores no município, o estabelecido no caput do artigo anterior, sob pena da lei.
Art. 6°. O uso das demais línguas indígenas faladas no município será assegurado nas escolas indígenas, conforme a legislação federal e estadual
Art. 7°. Revogadas as disposições em contrário.
Art. 8°. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
Sala de Sessões da Câmara Municipal de São Gabriel da Cachoeira/Estado do Amazonas, em 11 de dezembro de 2002.
DIEGO MOTA SALES DE SOUZA
Presidente da Câmara Municipal


Segundo Gilvan Müller de Oliveira, lingüista do Ipol (entidade sediada em Florianópolis/SC), o trabalho - por ele realizado junto com o advogado Márcio Rovere - teve como preocupação fundamental respeitar o artigo 13 da Constituição Federal, que determina o português como língua oficial da União. Para ele, a aprovação da lei mostra como a legislação pode ser utilizada para o fomento e a defesa da diversidade e da pluralidade.
A lei estipula, que, no prazo de até cinco anos, os órgãos públicos sediados no município de São Gabriel da Cachoeira e a iniciativa privada deverão ter funcionários aptos a atender aos seus cidadãos em português, Nheengatu, Tukano e no idioma Baniwa. O município deverá dispor de tradutores oficiais, e as leis e documentos do poder público deverão ter versões nessas três línguas. A esse  respeito, o Ipol anunciou que manterá sua parceria com a Foirn - entidade fundada em 1984 e que congrega 42 associações indígenas - e com outras entidades da sociedade civil, para gerar um corpo técnico de tradutores.
"É importante ressaltar que a lei não interfere nas práticas escolares e não entra em contradição com a legislação de educação escolar indígena. O artigo 6º dessa lei diz que o uso das demais línguas indígenas faladas no município será assegurado nas escolas", afirma a assessora da organização não-governamental (ONG) Instituto Socioambiental (ISA), Marta Azevedo.
O direito das escolas indígenas lecionarem a língua de sua comunidade está garantido em toda a legislação sobre educação indígena. O objetivo da nova lei é garantir o direito dos cidadãos indígenas habitantes nesse município de entenderem e se fazerem entender quando em diálogo com os poderes públicos.
Com 95% da população sendo de origem indígena, São Gabriel da Cachoeira é possivelmente o lugar mais plurilíngüe das Américas: um município de 112 mil km² (maior que Portugal ou Santa Catarina) onde se falam 22 línguas indígenas, de quatro troncos lingüísticos diferentes (Tupi-Guarani, Tukano Oriental, Maku e Aruak). Além disso, é possivelmente o único lugar no mundo em que o critério de casamento tradicional (no caso dos povos Tukano) é lingüístico (exogamia lingüística: um homem não pode se casar com uma mulher falante da mesma língua que ele). Já o Nheengatu (língua geral de base Tupi) foi introduzido pelos missionários e é falado pelos povos Baré, Werekena e algumas comunidades Baniwa.




São Gabriel da Cachoeira/AM, na margem do Rio Negro
Fotos: site pessoal de Gabriel (http://www.obsis.unb.br/pt/fotos/gabriel01.htm), março/2002

Nas páginas do Instituto Socioambiental (ISO) há mais informações sobre o tema, a seguir transcritas:
Associação recém-criada quer preservar a língua nheengatú Nascida do tupi e disseminada pela Amazônia desde o século XVI, o nheengatú é uma língua importante na região do Rio Negro, onde é falada pelos índios Baniwa, Baré e Werekena. Para preservá-la, manter os traços culturais de quem a fala e apoiar projetos de educação indígena, foi criada, no Rio Negro, a Sociedade Nheengatú (SNH)
"Língua boa". Este é o significado do termo nheengatú, que os índios na região norte do país usaram para nomear a língua de contato entre eles e os missionários e colonos europeus. Até o século XVIII, era a língua mais falada em todo o país, em duas variantes principais: o nheengatú da Província do Grão-Pará e a língua geral do sul do Brasil.
A origem do nheengatú, de acordo com estudo do padre Afonso Casasnovas, autor do livro Noções de Língua Geral ou Nheengatú, remete à chegada dos portugueses ao Brasil. Naquela época, a faixa litorânea compreendida entre os atuais estados de São Paulo e Maranhão era habitada predominantemente por índios tupinambá, que falavam o tupi. Como os colonizadores vinham para o Brasil, em sua maioria, sem mulheres, passavam a ter parceiras indígenas. Os filhos nascidos desses relacionamentos mantinham o tupi como língua materna.
Chamada de "língua geral" pelo Padre Anchieta, o tupi foi levado ao interior e ao norte do país durante o período das Entradas e Bandeiras, como estratégia de comunicação em regiões plurilingüísticas. Com o passar do tempo, a "língua geral" tornou-se distinta da falada em outras áreas do Brasil e conseguiu penetrar até em regiões onde nunca tinham vivido povos tupinambá. Assim, o nheengatú transformou-se na "língua geral" amazônica, como veículo da catequese e da vida cotidiana. Hoje, é falada por diversas comunidades dos rios Negro, Xié e no baixo Içana . "O nheengatú ajuda a comunicação com índios de outras regiões, mesmo com diferenças de pronúncia. Eu adoraria que tivesse um projeto como esse [da SNH] para a língua Baré", diz Maria Cordeiro da Costa, índia baré nascida na Venezuela, que trabalha na Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), em São Gabriel da Cachoeira. O idioma original dos Baré foi suplantado pela língua geral amazônica há mais de dois séculos.
Por ser uma língua basicamente oral, o nheengatú está se descaracterizando e sendo substituído pelo português. Segundo o lingüista Gilvan de Oliveira, este processo ocorre desde o século XIX, quando cerca de 500 mil imigrantes nordestinos levaram o português à região amazônica durante o ciclo da borracha. "Agora, as comunidades que falam nheengatú e as que antes falavam, querem resgatar a língua que muitos não falam mais " , explica Antenor Lutero Costa, presidente da recém-criada Sociedade Nheengatú e pertencente à etnia Baré. "O resgate é importante tanto como elemento cultural, quanto como veículo para comunicação entre povos e para o melhor desenvolvimento do trabalho das escolas indígenas".
Gilvan de Oliveira afirma que a criação da sociedade está relacionada aos cursos de formação de professores indígenas da região do Rio Negro. É que foi do intercâmbio entre esses profissionais, de diferentes etnias e conhecimentos lingüísticos, que surgiu a idéia de se preservar e reavivar o nheengatú. Para o planejamento de cursos, oficinas e materiais didáticos com vistas ao fortalecimento do nheengatú, a SNH contará com a parceria do Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Políticas Lingüísticas (Ipol), cuja equipe é integrada por Oliveira. Um exemplo do tipo de iniciativa a ser promovida pela SNH é o curso de 60 horas ministrado a 34 índios Mura. Eles estão buscando revitalizar a língua, que há duas gerações era falada pela maioria de seu povo.
Também está previsto para novembro, no município de São Francisco, no médio Rio Amazonas, um curso de uma semana de duração, quando a equipe da associação se reunirá para determinar os futuros trabalhos, que deverão incluir um programa de rádio em Nheengatú, cursos de capacitação e projetos de inserção da língua nos currículos escolares. A criação da SNH pode ser mais um passo rumo à oficialização, em nível municipal, das línguas mais faladas na região do Rio Negro, que são o baniwa, o tukano e o nheengatú.
Mas há quem não concorde. Aryon Dall'Igna Rodrigues, autor da obra de referência nacional Línguas Brasileiras, acredita que uma vez que o nheengatú não é natural da Amazônia, não deveria ser oficializada como tal. De qualquer maneira, Rodrigues, que foi informado da criação da SNH pela reportagem do ISA, considerou a proposta interessante e pretende acompanhar de perto os trabalhos da associação.
Para quem não sabe, o nheengatú possui grande influência sobre a cultura brasileira, sendo responsável por cerca de 10 mil palavras da língua portuguesa falada no país. Basta lembrar algumas já incorporadas ao nosso cotidiano como araponga, jacaré, jararaca, caatinga, cana, ipê etc. Além do mais, o nheengatú é a base de tradições, lendas e histórias, que podem ser encontradas em livros antigos, escritos na língua original.
Ricardo Barretto, ISA, 10/09/01

 São Gabriel da Cachoeira, na margem do Rio Negro

fonte


Lei que oficializa línguas indígenas será apresentada em reunião do MEC

10/03/2003

ISA - A lei do município de São Gabriel da Cachoeira (AM) que co-oficializa as línguas Nheengatu, Tukano e Baniwa será apresentada durante a reunião extraordinária sobre educação escolar indígena que será promovida pelo Ministério da Educação (MEC) e pelo Conselho Nacional de Educação. O encontro começa amanhã, 11/03, e vai até 13/03.
Essa é a primeira vez no Brasil que línguas indígenas são reconhecidas como co-oficiais ao lado da língua portuguesa. A lei 145/2002, aprovada no dia 22/11/2002, foi proposta pelo vereador indígena Camico Baniwa, a partir de um projeto elaborado pelo Instituto de Investigação e Desenvolvimento de Políticas Lingüísticas (Ipol) a pedido da Federação das Organizações Indigenas do Rio Negro (Foirn).
Segundo Gilvan Müller de Oliveira, lingüista do Ipol, o trabalho teve como preocupação fundamental respeitar o artigo 13 da Constituição Federal, que determina o português como língua oficial da União. Para ele, a aprovação da lei mostra como a legislação pode ser utilizada para o fomento e a defesa da diversidade e da pluralidade.
A lei estipula que, no prazo de até cinco anos, os órgãos públicos sediados no município de São Gabriel da Cachoeira e a iniciativa privada deverão ter funcionários aptos a atender aos seus cidadãos em português, Nheengatu, Tukano e no idioma Baniwa. O município deverá dispor de tradutores oficiais, e as leis e documentos do poder público deverão ter versões nessas três línguas. A esse respeito, o Ipol anunciou que manterá sua parceira com a Foirn e com outras entidades da sociedade civil, para gerar um corpo técnico de tradutores. Também está previsto pela lei que o município de São Gabriel da Cachoeira deve incentivar e apoiar o aprendizado e o uso das línguas co-oficiais nas escolas e nos meios de comunicação.
"É importante ressaltar que a lei não interfere nas práticas escolares e não entra em contradição com a legislação de educação escolar indígena. O artigo 6º dessa lei diz que o uso das demais línguas indígenas faladas no município será assegurado nas escolas", afirma a assessora do Instituto Socioambiental (ISA), Marta Azevedo. O direito das escolas indígenas lecionarem a língua de sua comunidade está garantido em toda a legislação sobre educação indígena. O objetivo da nova lei é garantir o direito dos cidadãos indígenas habitantes nesse município de entenderem e se fazerem entender quando em diálogo com os poderes públicos.
Na região do município de São Gabriel da Cachoeira são faladas 22 línguas pertencentes a 3 famílias lingüísticas: Tukano Oriental, Aruak e Maku. Além dessas, o Nheengatu (língua geral de base Tupi) foi introduzido pelos missionários e é falado pelos povos Baré, Werekena e algumas comunidades Baniwa.

Confira o texto na íntegra da lei abaixo e o parecer de Gilvan Müller a respeito.

LEI No. 145 DE 11 DE DEZEMBRO DE 2002
Dispõe sobre a Co-Oficialização das Línguas
NHEENGATU, TUKANO e BANIWA, a Língua
Portuguesa no município de São Gabriel da
Cachoeira/Estado do Amazonas
O Presidente da Câmara Municipal de São Gabriel da Cachoeira/AM
FAÇO saber a todos que a Câmara Municipal de São Gabriel da Cachoeira/Estado do Amazonas decretou o seguinte:
LEI:
Art. 1°. A língua portuguesa e o idioma oficial da República Federal do Brasileira
Parágrafo Único – Fica estabelecido que o município de São Gabriel da Cachoeira/Estado do Amazonas, passa a ter como línguas co-oficiais, as Nheengatu, Tukano e Baniwa.
Art. 2°. O Status de língua co-oficial concedidos por esse objeto, obriga o município
§1°. A prestar os serviços públicos básicos de atendimento ao público nas repartições públicas na língua oficial e nas três línguas co-oficiais, oralmente e por escrito:
§2°. A produzir a documentação pública, bem como as campanhas publicitárias institucionais na língua oficial e nas três línguas co-oficiais
§3°. A incentivar a apoiar o aprendizado e o uso das línguas co-oficiais nas escolas e nos meios de comunicações.
Art. 3°. São válidas e eficazes todas as atuações administrativas feitas na língua oficial ou em qualquer das co-oficiais.
Art. 4°. Em nenhum caso algu~em pode ser discriminado por razão da língua oficial ou co-oficial que use.
Art. 5°. As pessoas jurídicas devem r também um corpo de tradutores no município, o estabelecido no caput do artigo anterior, sob pena da lei.
Art. 6°. O uso das demais línguas indígenas faladas no município será assegurado nas escolas indígenas, conforme a legislação federal e estadual
Art. 7°. Revogadas as disposições em contrário.
Art. 8°. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
Sala de Sessões da Câmara Municipal de São Gabriel da Cachoeira/Estado do Amazonas, em 11 de dezembro de 2002.

DIEGO MOTA SALES DE SOUZA
Presidente da Câmara Municipal



Nheengatu, Tukano e Baniwa, primeiras línguas indígenas a virarem oficiais no Brasil
Sexta, 14 Fevereiro 2003 
Em passado dia 22 de Novembro, foi aprovada pela Câmara do Vereadores de São Gabriel da Cachoeira a Lei de Co-oficialização do Nheengatu, Tukano e Baniwa no município, sito no Alto Rio Negro, no Amazonas.

Trata-se da primeira vez na história do Brasil que uma (neste caso três) línguas indígenas são elevadas, por lei, ao status de língua oficial. O projeto foi solicitado ao IPOL pela Federação das Organizações Indigenas do Rio Negro (FOIRN), entidade fundada em 1984 e que congrega 42 associações indígenas durante sua assembléia geral de janeiro de 2000, na presença de 513 delegados. [+...]

O trabalho foi feito por uma equipe do Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Lingüística – IPOL, em conjunto com o advogado Márcio Rovere, e desenvolveram o conceito de co-oficialização para sinalizar total respeito ao artigo 13 da Constituição Federal, pelo qual o português é a língua oficial da União. Pelo projeto apresentado, todos os órgãos da prefeitura e dos demais poderes sediados no município, inclusive a iniciativa privada, devem dispor de funcionário para atender aos cidadãos em português e nas três línguas co-oficiais; a documentação da prefeitura deve ser produzida nas quatro línguas; todas as escolas sediadas no município ensinarão pelo menos uma das línguas indígenas co-oficiais, mesmo que não sejam escolas indígenas, além de outros pontos.

As medidas têm um prazo de cinco anos para entrarem em vigor, prazo no qual a equipa do IPOL continuará trabalhando, com a FOIRN e outras entidades da sociedade civil, de maneira a disponibilizar recursos, gerar corpo técnico para a elaboração das traduções, etc. A aprovação dessa lei (145/2002) é de grande importância no contexto das discussões sobre o Projeto de Lei dos Estrangeirismos, porque mostra exatamente como a legislação pode ser utilizada para o fomento e a defesa da diversidade e da pluralidade, e não o contrário. São Gabriel da Cachoeira é possivelmente o lugar mais plurilíngüe das Américas: um município de 112.000 km quadrados (maior que Portugal ou Santa Catarina) onde se falam 22 línguas indígenas diferentes, de 4 troncos lingüísticos direfentes (Tupi-Guarani, Tukano Oriental, Maku e Aruak). Além disso, é possivelmente o único lugar no mundo em que o critério de casamente tradicional (no caso dos povos Tukano) é lingüístico (exogamia lingüística: um homem não pode se casar com uma mulher falante da mesma língua que ele). O IPOL atua na região desde 1997, quando um dos seus integrantes, Gilvan Müller de Oliveira, esteve como docente do Curso de Magistério Indígena da Prefeitura Municipal, no qual se formaram os primeiros 163 professores indígenas que atuam nas escolas públicas da região.

Atualmente a equipe do Rio Negro é formada por 4 pessoas (Maurice Bazin, Silvia de Oliveira, Andréa Scaravelli e Gilvan Müller de Oliveira). Sua atuação se dá em parceria com o ISA - Instituto Socioambiental, ONG que desenvolve vários projetos na região-. São Gabriel da Cachoeira é um município de ampla maioria indígena (cerca de 95% da população é indígena) e que esse é o caso de vários outros municípios no Brasil.

Primeira ONG brasileira dedicada à política lingüística, fundada em 1999 e tendo por sede Florianópolis, no sul do país, o IPOL atua em seis programas de trabalho: Línguas Autóctones, Línguas Alóctones, Gestão Escolar da Língua Portuguesa, Segunda Língua, Lusofonia e Mercosul. É uma entidade sem fins lucrativos, composto por membros de várias especialidades, e que tem criado e administrado bancos de dados sobre as línguas brasileiras do ponto de vista dos direitos lingüísticos dos cidadãos.


Fonte:
Gilvan Müller de Oliveira, Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Lingüística - IPOL Rua Lauro Linhares, 2123 - Torre A - Sala 713 - Trindade CEP. 88036-002 - Florianópolis - SC - Brasil Fone/Fax: ( 48 ) 234 8056 / e-mail: HYPERLINK ipol@ipol.org.br / página: HYPERLINK http://www.ipol.org.br.


Associação recém-criada quer preservar a língua nheengatú

10/09/2001

Autor: Ricardo Barretto
Fonte: Site do ISA- Socioambiental.org.-São Paulo-SP

Nascida do tupi e disseminada pela Amazônia desde o século XVI, o nheengatú é uma língua importante na região do Rio Negro, onde é falada pelos índios Baniwa, Baré e Werekena. Para preservá-la, manter os traços culturais de quem a fala e apoiar projetos de educação indígena, foi criada, no Rio Negro, a Sociedade Nheengatú (SNH).
"Língua boa". Este é o significado do termo nheengatú, que os índios na região norte do país usaram para nomear a língua de contato entre eles e os missionários e colonos europeus. Até o século XVIII, era a língua mais falada em todo o país, em duas variantes principais: o nheengatú da Província do Grão-Pará e a língua geral do sul do Brasil.

A origem do nheengatú, de acordo com estudo do padre Afonso Casasnovas, autor do livro Noções de Língua Geral ou Nheengatú, remete à chegada dos portugueses ao Brasil. Naquela época, a faixa litorânea compreendida entre os atuais estados de São Paulo e Maranhão era habitada predominantemente por índios tupinambá, que falavam o tupi. Como os colonizadores vinham para o Brasil, em sua maioria, sem mulheres, passavam a ter parceiras indígenas. Os filhos nascidos desses relacionamentos mantinham o tupi como língua materna.

Chamada de "língua geral" pelo Padre Anchieta, o tupi foi levado ao interior e ao norte do país durante o período das Entradas e Bandeiras, como estratégia de comunicação em regiões plurilingüísticas. Com o passar do tempo, a "língua geral" tornou-se distinta da falada em outras áreas do Brasil e conseguiu penetrar até em regiões onde nunca tinham vivido povos tupinambá. Assim, o nheengatú transformou-se na "língua geral" amazônica, como veículo da catequese e da vida cotidiana. Hoje, é falada por diversas comunidades dos rios Negro, Xié e no baixo Içana . "O nheengatú ajuda a comunicação com índios de outras regiões, mesmo com diferenças de pronúncia. Eu adoraria que tivesse um projeto como esse [da SNH] para a língua Baré", diz Maria Cordeiro da Costa, índia baré nascida na Venezuela, que trabalha na Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), em São Gabriel da Cachoeira. O idioma original dos Baré foi suplantado pela língua geral amazônica há mais de dois séculos.

Por ser uma língua basicamente oral, o nheengatú está se descaracterizando e sendo substituído pelo português. Segundo o lingüista Gilvan de Oliveira, este processo ocorre desde o século XIX, quando cerca de 500 mil imigrantes nordestinos levaram o português à região amazônica durante o ciclo da borracha. "Agora, as comunidades que falam nheengatú e as que antes falavam, querem resgatar a língua que muitos não falam mais " , explica Antenor Lutero Costa, presidente da recém-criada Sociedade Nheengatú e pertencente à etnia Baré. "O resgate é importante tanto como elemento cultural, quanto como veículo para comunicação entre povos e para o melhor desenvolvimento do trabalho das escolas indígenas".

Gilvan de Oliveira afirma que a criação da sociedade está relacionada aos cursos de formação de professores indígenas da região do Rio Negro. É que foi do intercâmbio entre esses profissionais, de diferentes etnias e conhecimentos lingüísticos, que surgiu a idéia de se preservar e reavivar o nheengatú. Para o planejamento de cursos, oficinas e materiais didáticos com vistas ao fortalecimento do nheengatú, a SNH contará com a parceria do Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Políticas Lingüísticas (Ipol), cuja equipe é integrada por Oliveira. Um exemplo do tipo de iniciativa a ser promovida pela SNH é o curso de 60 horas ministrado a 34 índios Mura. Eles estão buscando revitalizar a língua, que há duas gerações era falada pela maioria de seu povo.

Também está previsto para novembro, no município de São Francisco, no médio Rio Amazonas, um curso de uma semana de duração, quando a equipe da associação se reunirá para determinar os futuros trabalhos, que deverão incluir um programa de rádio em Nheengatú, cursos de capacitação e projetos de inserção da língua nos currículos escolares. A criação da SNH pode ser mais um passo rumo à oficialização, em nível municipal, das línguas mais faladas na região do Rio Negro, que são o baniwa, o tukano e o nheengatú.

Mas há quem não concorde. Aryon Dall'Igna Rodrigues, autor da obra de referência nacional Línguas Brasileiras, acredita que uma vez que o nheengatú não é natural da Amazônia, não deveria ser oficializada como tal. De qualquer maneira, Rodrigues, que foi informado da criação da SNH pela reportagem do ISA, considerou a proposta interessante e pretende acompanhar de perto os trabalhos da associação.

Para quem não sabe, o nheengatú possui grande influência sobre a cultura brasileira, sendo responsável por cerca de 10 mil palavras da língua portuguesa falada no país. Basta lembrar algumas já incorporadas ao nosso cotidiano como araponga, jacaré, jararaca, caatinga, cana, ipê etc. Além do mais, o nheengatú é a base de tradições, lendas e histórias, que podem ser encontradas em livros antigos, escritos na língua original.
 

Nheengatú

A primeira língua falada pelos brasileiros no século XVI.
Nascida do tupi e disseminada pela Amazônia desde o século XVI, o nheengatú é uma língua importante na região do Rio Negro, onde é falada pelos índios Baniwa, Baré e Werekena. Para preservá-la, manter os traços culturais de quem a fala e apoiar projetos de educação indígena, foi criada, no Rio Negro, a Sociedade Nheengatú (SNH).
"Língua boa". Este é o significado do termo nheengatú, que os índios na região norte do país usaram para nomear a língua de contato entre eles e os missionários e colonos europeus. Até o século XVIII, era a língua mais falada em todo o país, em duas variantes principais: o nheengatú da Província do Grão-Pará e a língua geral do sul do Brasil.
A origem do nheengatú, de acordo com estudo do padre Afonso Casasnovas, autor do livro Noções de Língua Geral ou Nheengatú, remete à chegada dos portugueses ao Brasil. Naquela época, a faixa litorânea compreendida entre os atuais estados de São Paulo e Maranhão era habitada predominantemente por índios tupinambá, que falavam o tupi. Como os colonizadores vinham para o Brasil, em sua maioria, sem mulheres, passavam a ter parceiras indígenas. Os filhos nascidos desses relacionamentos mantinham o tupi como língua materna.
Vocabulário:algumas palavras em nheengatú.
* __kury__ = Futuro * __saîsu__ = Amar
* __potyra__ = Flor * __mira__ = Gente, povo.
* __maresê__ = Porque * __pará__ = Mar.
* __potyra__ = Flor * __poranga__ = Bonito.
* __purangaûa__ = Beleza. * __pyá__ = Coração, peito
 
Fonte: ISA


Artigo
A diversidade linguística no Brasil: considerações sobre uma proposta de política
Maria Cecília Londres Fonseca

O Brasil costuma ser considerado, aos olhos estrangeiros e sobretudo pelos próprios brasileiros, como país dotado de invejável homogeneidade lingüística, situação que contribuiria para consolidar a unidade política da nação. Criou-se em nosso imaginário uma comunidade constituída basicamente pelas “três raças formadoras” (o português, o indígena e o negro), mas expressando-se em uma língua comum – o português. O idioma nacional tem o status de língua oficial, sendo compulsório o seu uso em todos os atos da relação entre o Estado e os cidadãos, e seu ensino nas escolas públicas [1]. O artigo 13 da Constituição Federal de 1988 explicita, pela primeira vez em texto constitucional, que “a língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil”. Essa imagem, no entanto, não expressa a realidade do que ocorre em inúmeras regiões do país, onde vários grupos de brasileiros falam também outras línguas que expressam visões de mundo, valores e significados fundamentais para a história e a identidade desses grupos e da própria nação. É verdade que as línguas faladas pelos diferentes grupos indígenas vêm recebendo atenção especial não apenas de lingüistas como de agentes de políticas públicas. Fato marcante foi, a partir de 1991, o envolvimento do Ministério da Educação na formação escolar dos povos indígenas, até então sob a responsabilidade da Funai.
Essa mudança teve como fundamento a Constituição Federal de 1988, que reconhece, com base nos artigos 215 parágrafo 2º. e 231, que os indígenas terão direito a uma educação diferenciada. “O ensino fundamental será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem” (Art. 210 parágrafo 2º ). A formação de educadores aptos a ministrar uma educação básica bilíngüe tem sido um dos eixos centrais dessa política, [2], ação que certamente contribuirá para a sobrevivência das cerca de duzentas línguas indígenas ainda faladas hoje no Brasil.
Outro fato marcante nesse sentido foi a promulgação, no município de São Gabriel da Cachoeira (AM), onde cerca de 90% da população é de indígenas e descendentes, da lei 145/2002, que cooficializa as línguas nheengatu, tukano e baniwa. Essa proposta veio em atendimento a uma demanda da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN, e foi desenvolvida com a colaboração do Instituto de Investigação e Desenvolvimento de Políticas Linguísticas (Ipol).
Entretanto, outras comunidades de falantes, sobretudo de línguas alóctones, também chamadas línguas de imigração, mas também de falares afro-brasileiros, têm reivindicado maior atenção por parte do Estado para o reconhecimento da diversidade lingüística brasileira. Essa demanda veio a ser, recentemente, dirigida à área da cultura, uma vez que, desde 1997 [3], vêm sendo formulados, no âmbito do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), instrumentos específicos para efetivar, no campo das políticas de patrimônio cultural, a concepção ampla de patrimônio expressa no artigo 216 da Constituição Federal. O decreto 3551, de 4 de agosto de 2000, que “institui o Registro dos Bens Culturais de natureza Imaterial e cria o Pro grama Nacional do Patrimônio Imaterial”, abre espaço para o reconhecimento, pelo Estado, como patrimônio cultural do Brasil, de bens de caráter processual e dinâmico “que têm como referência a (sua) continuidade histórica (...) e sua relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira.” (Art. 1º. Parágrafo 2º.).
No cenário internacional, a questão da diversidade lingüística se insere no universo mais amplo da preocupação com a diversidade cultural. Em 2002, a Unesco publicou o Atlas das línguas em perigo no mundo; em 2003 foi aprovada pela Assembléia Geral da organização a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, que inclui no seu Artigo 2, intitulado Definições, “a língua como vetor do patrimônio cultural imaterial” ; e, em 2005, a Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais reconhece em seu Preâmbulo que “a diversidade lingüística é um elemento fundamental da diversidade cultural”. Acha-se em estudo, na ONU, a proposta de uma Declaração Universal dos Direitos Lingüísticos, proclamada em Barcelona em 1996.
A aplicação do decreto 3.551/2000 e a implantação de uma política pública específica para o patrimônio cultural imaterial tem como base antecedentes importantes, como a experiência acumulada pelos movimentos em defesa do folclore brasileiro, a atuação de Mário de Andrade e seus seguidores na pesquisa etnográfica e no campo das políticas públicas, os trabalhos de folcloristas como Luis da Câmara Cascudo, além, é claro, de inúmeras outras contribuições de grupos da sociedade ligados às questões indígenas, afro-brasileiras, etc. No processo de elaboração do decreto, procurou-se reunir essas contribuições [4], assim como levantar as questões pertinentes ao tema, como a da relação entre patrimônio material e patrimônio imaterial, entre processos culturais e meio-ambiente, da propriedade intelectual e dos direitos coletivos, do consentimento prévio, da constituição de banco de dados que resguarde, quando for solicitado, o direito ao sigilo sobre informações, etc.
Alguns princípios básicos foram firmados: o caráter necessariamente participativo e compartilhado dessas políticas; o caráter descentralizado de sua implementação; o caráter transitório do Registro; e o caráter singular dos planos de salvaguarda, cuja implantação deveria ser protagonizada pelos interessados - produtores e comunidades. Em suma, ficou muito clara a idéia de que essas iniciativas vinham complementar instrumentos já existentes – o tombamento e todas as outras formas de preservação do patrimônio cultural brasileiro, como os inventários, os planos de manejo de centros históricos, o tratamento particularizado dos sítios arqueológicos e paisagísticos, etc.
Desde o início dos trabalhos, foram levantadas as questões da inclusão das línguas no âmbito do patrimônio cultural imaterial – fato incontestável – e das formas adequadas à sua preservação – questão considerada bastante complexa, que só poderia ser enfrentada com a colaboração de lingüistas, educadores e outros parceiros, sobretudo dos próprios falantes. Trabalhos nesse sentido já vêm sendo desenvolvidos em universidades, institutos de pesquisa, e também em instituições públicas, como o Museu do Índio, vinculado à FUNAI.
Mas, já em 2001 a Associação dos Apresentadores de Programas de Rádio “Talian” do Brasil (Assaprotabras), encaminhava ao Iphan pedido de Registro dessa língua de imigração, derivada do vêneto italiano, falada e agora também escrita no sul do país. O dossiê de estudos foi aberto em 7 de maio de 2001 – portanto menos de um ano após a publicação do decreto – e, por questões técnicas, não teve andamento. Isso não significava, no entanto, que a demanda não fosse relevante, e, em 2005, começaram os preparativos para um Seminário Legislativo sobre a Criação do Livro de Registro das Línguas, a cargo da Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, em parceria com o IPHAN, representado pelo seu Departamento do Patrimônio Imaterial, e pelo IPOL, acima citado.
O Seminário foi realizado de 7 a 9 de março de 2006, no Congresso Nacional, e contou com ampla participação de órgãos públicos e de organizações da sociedade. A principal reivindicação do grupo ali reunido era o reconhecimento, pelo Estado, da pluralidade lingüística do país, e o caminho proposto era a criação de um Livro de Registro de Línguas, conforme possibilidade prevista no decreto 3.551/2000, em seu Artigo 1º. Parágrafo 3º. Vários falantes de línguas indígenas (Nheengatu e Guarani), afro-brasileiras (falante de Gira de Tabatinga-MG) e de imigração (Talian, Hunsruckkish e Pomerano) se expressaram em seus próprios idiomas, e todo o encontro foi traduzido para a platéia na Língua Brasileira de Sinais (Libras) [5].
Dada a complexidade do assunto, e as dúvidas sobre qual seriam os melhores instrumentos para atingir os fins desejados, foi criado, ao término do Seminário, um Grupo de Trabalho, a ser coordenado pelo Iphan, que ficaria encarregado de examinar essas questões. Até o momento, o GT avançou no sentido de elaborar uma primeira proposta de metodologia para o inventário das línguas e de fazer contatos com outras instituições, como o IBGE, solicitando a esse instituto que seja incluído no censo a ser realizado em 2010 o quesito lingüístico.
Ao longo das reuniões, ficaram claros alguns consensos: a necessidade e a importância de de se proceder a um inventário das línguas e falares do Brasil; a atenção para não “aprisionar” as línguas em fronteiras geo-políticas (como no caso de línguas indígenas faladas em mais de um país da América do Sul); o imperativo de se firmarem parcerias com outros órgãos públicos, tanto em nível federal, como entre a União, estados e municípios; a necessidade de se sensibilizar a sociedade, pelos mais diversos meios, para o reconhecimento da pluralidade linguística do Brasil, e para a necessidade de se formular e implementar políticas nesse sentido.
Algumas questões ficaram em aberto, à espera de aprofundamento: em que medida a figura do Registro, necessariamente seletiva, se aplica ao universo das línguas? Com base em que critérios se “distinguiria” algumas dessas línguas, em detrimento de outras? É possível falar em direitos lingüísticos a serem reivindicados com base na legislação existente, ou mesmo em instrumento legal a ser criado? Como lidar com a situação de línguas mortas, como línguas indígenas aqui faladas no passado, e amplamente documentadas?
Ainda há muito trabalho a ser feito, mas, pelo menos, a questão está posta, e conta com o empenho de várias organizações e grupos da sociedade brasileira. Como no caso da valorização de nossa diversidade biológica, e de nossa diversidade cultural, esse passo vem contribuir para produzir um retrato mais matizado e complexo do Brasil, e sobretudo para o reconhecimento da contribuição que línguas praticamente desconhecidas da grande maioria dos brasileiros trazem para a nossa história e para o respeito de todos em relação aos seus falantes.

Notas:
[1] Em seu romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto descreve o protagonista como um idealista, que faz requerimento ao Congresso Nacional pedindo que “decrete o tupi-guarani como língua oficial e nacional do povo brasileiro”. (BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. São Paulo, Brasiliense, 1969, 6ª. edição, pág. 78-94). O requerimento é recebido com chacota pelos congressistas e pela imprensa, e a redação inadvertida (ou melhor, movida por sua paixão) de um ofício em tupi provoca uma reação que acaba levando Policarpo ao manicômio. Esse e outros sonhos do protagonista – como sua incursão na agricultura – são usados pelo narrador para contrapor esse personagem à pequenez e à mediocridade da sociedade carioca durante a presidência de Floriano Peixoto.
[2] Uma das iniciativas precursoras no sentido da implementação de uma educação indígena diferenciada ocorreu no âmbito do Programa “Interação entre educação básica e contextos culturais específicos”, desenvolvido na década de 1980 pela Secretaria de Cultura do MEC em parceria com a Secretaria de Primeiro e Segundo Grau desse mesmo ministério, e outros órgãos federais e locais. Essa ação é atualmente conduzida pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Cultural do MEC.
[3] Esse processo teve início com o Seminário “Patrimônio Imaterial Estratégias e Formas de Proteção”, realizado em Fortaleza de 10 a 14 de novembro de 1997, no âmbito das comemorações dos setenta anos de criação do Iphan.
[4] Ver documentos publicados em O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho do Patrimônio Imaterial. Brasília: Ministério da Cultura / Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2ª. edição, 2003.
[5] A Língua Brasileira de Sinais (Libras), é a única das línguas que foram apresentadas no Seminário do Congresso Nacional que já conquistou legislação federal geradora de direitos.
[6] Foi observado pelos lingüistas que participam do GT que apenas em relação às línguas indígenas já existe razoável produção de informação.

Artigo
Uma política patrimonial e de registro para as línguas brasileiras
Rosângela Morello e Gilvan Müller de Oliveira
[1] 1. Apresentação
Neste texto discutimos as diretrizes de criação do Livro de registro das línguas, um instrumento através do qual o Estado reconhece as línguas das comunidades brasileiras como patrimônio cultural imaterial da Nação, dentro do Programa de Registro do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) do Ministério da Cultura do Brasil (MinC). Sustentado em um diagnóstico que mostra a necessidade de se aprofundar a definição de um espaço de atuação política do Estado Brasileiro, em conjunto com as sociedades civis, este instrumento propõe fomentar um fórum de debate e de proposição de ações no campo das políticas lingüísticas em, ao menos, três linhas de atuação:
1. A promoção do direito às línguas;
2. A instalação de políticas de registro e circulação das línguas e
3. A elaboração de equipamentos - instrumentos e dispositivos – articulados às políticas lingüísticas.
O pedido de criação desse Livro de registro das línguas foi encaminhado ao Iphan em 2004, pelo então presidente da Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, Sr. Carlos Abicalil, com assessoria do Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Lingüística (Ipol). Após os trâmites interinstitucionais, realizou-se, em março de 2006, um seminário [2] para a discussão sobre a possibilidade de uma ação patrimonial para as línguas brasileiras, além de critérios e procedimentos para os registros. Este seminário conduziu à formação de um grupo interinstitucional [3] para dar continuidade aos trabalhos. Nosso objetivo é explicitar as linhas gerais de implementação dessa proposta, indicando seus desdobramentos e questionamentos atuais.
2. As línguas pelo Brasil
A política para a diversidade das línguas é tema recente no Brasil. Sob o ideário de um povo, uma nação, uma língua, o Estado brasileiro desenvolveu uma política lingüística direcionada ao monolingüismo, centrada na língua portuguesa como língua oficial e nacional. Ligada à própria conformação da nacionalidade brasileira, essa posição monolingüística se erigiu no período colonial com o Diretório dos Índios (1757), que obrigava o uso da língua portuguesa no Estado do Grão Pará e Maranhão em detrimento da língua geral, de base tupi (língua indígena), em franca utilização naquele momento. Seguindo essa direção, tivemos na história do país várias medidas de controle da diversidade lingüística, como as das campanhas de nacionalização da década de 1930 [4], além das que garantem a manutenção de políticas educacionais voltadas maciçamente ao ensino e uso da língua portuguesa como língua única.
O resultado dessa posição foi o extermínio de inúmeras línguas. Rodrigues (1986) calcula que se falavam no que é hoje o território brasileiro, em 1500, cerca de 1.200 línguas, das quais restaram cerca 180. Em 2005, diz esse autor: “a redução de 1200 para 180 línguas indígenas nos últimos 500 anos foi o efeito de um processo colonizador extremamente violento e continuado, o qual ainda perdura, não tendo sido interrompido nem com a independência política do país no início do século XIX, nem com a instauração do regime republicano no final desse mesmo século, nem ainda com a promulgação da "Constituição Cidadã" de 1988. Embora esta tenha sido a primeira carta magna a reconhecer direitos fundamentais dos povos indígenas, inclusive direitos lingüísticos, as relações entre a sociedade majoritária e as minorias indígenas pouco mudou. Graças à Constituição em vigor está havendo diversos desenvolvimentos importantes para muitas dessas minorias em vários planos, inclusive no acesso a projetos de educação mais específicos e com consideração de suas línguas nativas. Entretanto, ainda são grandes a hostilidade e a violência, alimentadas não só por ambições de natureza econômica, mas também pela desinformação sobre a diversidade cultural do país, sobre a importância dessa diversidade para a nação e para a humanidade e sobre os direitos fundamentais das minorias” (idem, 01).
Analisando a situação, observamos que 85% das línguas desapareceram sem deixar vestígios, já que se tratava de línguas ágrafas, isto é, sem escrita, como aliás a maioria das línguas do mundo. Conforme mostramos em outro trabalho, temos hoje um país em que “são faladas cerca de 210 línguas por cerca de um milhão e meio de cidadãos brasileiros que não têm o português como língua materna, e que nem por isso são menos brasileiros. Cerca de 190 línguas são autóctones, isto é, línguas indígenas de vários troncos lingüísticos, como o Apurinã, o Xokléng, o Iatê, e cerca de 20 são línguas alóctones, isto é, de imigração, que compartilham nosso devir nacional ao lado das línguas indígenas e da língua oficial há 200 anos, como é o caso do alemão, do italiano, do japonês" (Oliveira, 2003).
É certo que a existência dessas línguas coloca o Brasil entre os oito países que concentram mais da metade das línguas do globo, ao lado de Papua Nova-Guiné, Indonésia, Nigéria, Índia, México, Camarões, Austrália. No entanto, criar condições para que essa pluralidade de línguas continue existindo requer políticas de reconhecimento das línguas e de valoração de sua presença.
A Constituição de 1988, como se disse antes, foi um passo importante nessa direção, no que tange às línguas indígenas, atribuindo ao índio o estatuto de cidadão brasileiro que tem direito a sua língua e a sua cultura. No entanto, ela silencia sobre as línguas alóctones. Além disso, a ecologia das relações sociais, entre elas as lingüísticas, abriga, hoje, demandas e questões advindas da presença das tecnologias de linguagem que requerem um novo posicionamento do Estado e da sociedade civil, e, portanto, novas formas de ação política. É no diálogo com essa configuração social que situamos o debate sobre as políticas de registro envolvidas no Livro de registro das línguas como patrimônio imaterial dentro do Programa de Registro do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) do Ministério da Cultura do Brasil (MinC).
3. Política patrimonial e de registro para as línguas brasileiras [5]
Ao estabelecer uma política de registro nesses termos, estamos trazendo para o debate o fato de que o reconhecimento jurídico, embora seja fundamental, não é em si suficiente para promover um espaço multilingüe. Essa promoção requer políticas de implementação de usos das línguas, de abertura de espaços para que elas se legitimem, para que os falantes se posicionem, se projetem identitariamente. Desse modo, o registro como política no sentido aqui posto estabelece para as línguas dois patamares de significação: o de registro como reconhecimento jurídico e como instrumento de documentação, acervo e circulação. Em conseqüência, as iniciativas que demandam abrangem três linhas de atuação:
1. A promoção do direito às línguas;
2. A instalação de políticas de registro e circulação das línguas e
3. A elaboração de equipamentos - instrumentos e dispositivos – articulados às políticas lingüísticas.
3.1. A promoção do direito às línguas
A política de registro das línguas reforça a afirmação de que os cidadãos falantes das línguas brasileiras têm o direito a mantê-las, em conformidade com o que reza a Declaração universal dos direitos lingüísticos, elaborada sob os auspícios da Unesco (Barcelona, 1996), direito este reconhecido aos índios pela Constituição de 1988. Mas contemplá-la pela abertura de um livro de registro que resguarde as línguas como patrimônio imaterial da nação, estende esse direito a todos os brasileiros falantes de todas as línguas. E o amplia, na medida em que tratando de registro de línguas brasileiras, abrange todas as línguas, e não somente as indígenas.
Até então, o direito à língua, reconhecido aos índios, está centrado no direito ao ensino, sustentado por uma pedagogia de alfabetização e produção de material didático de cunho escolar. É certo que essa produção instrumentaliza o ensino de línguas e a formação de profissionais especializados para atuar nas suas comunidades. Mas seu funcionamento tende a se esgotar no próprio circuito do sistema de ensino, isto é, retorna para o meio que o originou, com baixa ressonância em outras relações de produção. Seu valor de instrumento lingüístico, no sentido em que um instrumento modifica a ecologia da comunicação humana, como propõe Auroux (1990), quase sempre não se potencializa.
O registro, por sua vez, produz um novo circuito de significação social dessa produção, interagindo com as tecnologias de linguagem. Nessa interação, os sentidos e as formas de registro devem ser negociados, construídos. Nesse processo, a língua deixa de ser mero objeto/conteúdo de ensino para se tornar instrumento de leitura e compreensão do mundo, de posicionamento dos sujeitos, de produção de argumentos e de tecnologias.
3.2. A instalação de políticas de registro e circulação das línguas
Portanto, e primeiramente, uma política de registro implica discutir os sentidos de registro: registrar o quê? Como? Para quê? Ela inclui, assim, a elaboração de formas possíveis para realizar os registros - considerando formatos impressos e em multimídia - visando os produtos desejados (ainda que provisórios) e a produção de condições para sua significação. O manuseio e a construção de equipamentos necessários ao registro fazem parte do trabalho. Por isso, o registro significa, em princípio, produção e vinculação do saber lingüístico.
Pela natureza do vínculo, que é social, o estatuto dos saberes produzidos e registrados deve ser compreendido em relação às diversas instâncias legitimadoras. Essa é a razão também pela qual o direito às línguas, como preceito universal, se localiza na história: os falantes se tornam os beneficiários e os responsáveis por construir as condições para que suas línguas circulem e se legitimem através da proposição de instrumentos e dispositivos não mais submetidos apenas ao domínio de saberes especializados, como tem sido o caso, majoritariamente, até o momento.
A perspectiva do registro também fortalece o lastro das relações sociais e as formas de representação das comunidades lingüísticas. A esse respeito, e a título de exemplo, foram encaminhados alguns pedidos para registro do talian (língua de imigrantes italianos) ao Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, o que caracteriza ações pontuais na direção de proposta mais ampla do livro das línguas. No entanto, seu acolhimento e desenvolvimento dentro de uma política de registro reorganiza o estatuto de representação dessa língua, na medida em que esta, como qualquer outra, deve ser capaz de especificar-se como uma língua valorando – e modificando, se for o caso - suas demandas face às de outras comunidades lingüísticas. Verificamos, desse modo, que a política de registro tem um potencial organizador das comunidades lingüísticas, porque estas deverão se nomear e negociarem entre si e com as instâncias administrativas e políticas produtoras de equipamentos (instrumentos e dispositivos) as condições desejadas para sua existência e para sua circulação.
A dinâmica da construção de uma representação negociada desencadeia um processo em que o debate é ação política. O debate significa um espaço em que o sujeito falante é instado a encontrar e formular sua fala, e as vias de ação sobre sua realidade no ecolingüístico da pluralidade cultural e lingüística do Brasil.
3.3. A elaboração de equipamentos - instrumentos e dispositivos – articulados às políticas lingüísticas.
As ações necessárias para o registro das línguas se fundamentam, como se viu, em debates sobre o estatuto dessas línguas, sobre as possibilidades de produzir seus registros, de potencializar seus modos de circulação, e de promover suas múltiplas articulações com outros saberes, inclusive o das tecnologias e os que tomam parte nas redes de conhecimento digital. Fazemos aqui, neste momento, uma projeção que a política patrimonial das línguas pode ter a partir do inventário e do registro das línguas ora em discussão.
Essas ações seguem primeiramente duas direções articuladas: 1: as de garantir a base material para o registro e 2: as de tornar essa base material objeto de conhecimento produzido e articulado nas línguas, e não apenas um suporte, ou um depositário de línguas.
No que diz respeito às sociedades do conhecimento, a preocupação declarada, por exemplo, por Pimenta (2005) sobre a necessidade de fomentar a diversidade, porque “ela assegura ao planeta as melhores possibilidades de se adaptar e sobreviver” e o uso “das novas tecnologias de maneira ativa, com produção de conteúdo próprio e não apenas de absorção do que é feito pelos outros” vem ao encontro dessas ações.
No entanto, é preciso ir além da ocupação do espaço com conteúdos ativos e socialmente significativos, e articular o que pensamos ser da natureza dos equipamentos tecnológicos como um espaço de articulação que abriga os instrumentos - que são a base material do registro -, e os dispositivos - que são ações no sentido de garantir a formulação do objeto, como é o caso de políticas tanto de tradução nas línguas, quanto de legalização das línguas, e ainda dos mecanismos que garantam a participação dos falantes nas instâncias representativas e deliberadoras das políticas públicas, não só as tecnológicas. De fato, um instrumento tecnológico – uma rede de computadores, por exemplo - nem sempre instala um dispositivo – medidas de apropriação da tecnologia como conhecimento, superando a questão da mera utilização da tecnologia.
Nossa idéia é que a perspectiva do registro que se sustenta em equipamentos tecnológicos permite estabelecer um novo olhar sobre as iniciativas, ainda que tímidas, de sustentação de políticas visando o plurilinguismo no Brasil, como a Lei Municipal de Co-oficialização de três línguas indígenas (tukano, nheengatu e baniwa), no município de São Gabriel da Cachoeira, Alto Rio Negro, Amazonas, assinada em 2002 e o Programa Binacional de Escolas Bilíngües de Fronteira, implementado pelos ministérios da Educação do Brasil e da Argentina, nesse ano de 2005. Nesses dois processos, uma política de registro de conhecimento começa a ser implementada com apoio do Ministério da Educação e Cultura (MEC), através do e-proinfo (uma plataforma para ensino à distância) para o caso das Escolas Bilíngües, e da Unicef, para a região de S. Gabriel da Cachoeira[6].
Se pensarmos a questão do multilingüismo na rede da sociedade do conhecimento digital a partir da perspectiva dessa política de registro, veremos que é fundamental a participação dos falantes das línguas na formulação dos saberes lingüísticos que entram ou não na rede. No entanto, é preciso considerar que essa entrada dos sujeitos na rede se faz por um posicionamento que os submete a uma contradição.
De um lado, essas sociedades se sustentam potencialmente na universalidade de um saber que está codificado e destinado a todos (e a ninguém especificamente) ao que corresponde um sujeito que pode e deve se conhecer e se comunicar através de redes de significação instaladas, ou passíveis de serem digitalizadas. As séries infinitas de páginas na web e a abertura incontida de links para o sujeito compor seu dizer (no sistema copiar/colar, por exemplo), assim como a naturalização de equipamentos que mapeiam seja o corpo do sujeito seja o espaço sensível do mundo (como é o caso dos microships para intervenção no corpo ou para satélites de rastreamento) explicitam essa universalidade[7].
De outro, essas sociedades se sustentam necessariamente em vínculos sociais. Vínculos de sujeitos no mundo e com ele. Assim, ao lado do saber para todos e de todos, por onde se identifica o sujeito universal, uma infinidade de fóruns, blogs, sites particulares etc., assim como ataques virulentos sobre a zona criptografada e escondida da rede, sintomatizam esses vínculos.
Essa contradição não se resolve na rede, senão nas políticas que a dividem, colocando em cena interesses diversos, que se confrontam. Essa contradição explicita uma propriedade política da rede, que interfere em sua configuração a partir da significação social dos saberes.
Uma política de registro das línguas concebida como produção e vinculação de saberes pode justamente promover a propriedade política da tecnologia digital. Na medida em que envolve uma relação com as tecnologias digitais, lida com a contradição a que nos referimos. Mas se não pode superá-la, deverá ser capaz de explicitá-la como instrumento de negociação dos sujeitos. E isso se dá porque a política de registro garante aos sujeitos falantes a formulação dos instrumentos e dispositivos necessários à equipagem de suas línguas, de suas demandas, evitando sua alienação na mediação dos técnicos ou especialistas ou em sua reificação no plano cultural.
4. Um novo campo de questões
Estabelecemos, assim, uma abertura de diálogo entre as instâncias formuladoras das políticas lingüísticas e tecnológicas dos Estados e das sociedades civis, para de novo perguntar: De que modos é possível articular a equipagem das línguas às políticas de conhecimento das sociedades digitais? Como ou qual registro conduz às políticas de conhecimento? E que políticas são essas? Se os sentidos de conhecimento, registro e políticas se opacificam, não é porque carecem de uma boa definição, à priori. Mas porque os remetemos à agentividade das comunidades lingüísticas, responsáveis por reverter seus sentidos e demandas em forma de produtos concretos, onde registrar não significa uma retirada da língua de suas mãos, antes pelo contrário.
Os membros da comissão GTLB têm, indiretamente, assumido essas questões para debate, procurando considerá-las no processo de discussão atual visando a definição de critérios para nortear a concepção e execução de um inventário das línguas. Esse inventário comparece, assim, como um importante instrumento de implementação da política patrimonial e de registro[8] aqui proposta, prevendo que se reserve às comunidades lingüísticas o direito de requererem ou não o registro. Por esse motivo, os procedimentos que o estruturam não devem seguir o tradicional trajeto dos mapeamentos geodemográficos, O espaço de polêmica se mantém, portanto, exigindo a cada vez novas negociações, o que é, em si, um ganho no processo político de afirmação dos sujeitos e suas línguas – na sua própria construção e na construção de uma nova nacionalidade brasileira, democrática e plural.
Bibliografia
MORELLO, R. “Política científica e linguagens da tecnologia”, em Morello, R. (org.), Giros na cidade, Editora Labeurb/Unicamp, Campinas, 2004
OLIVEIRA, Gilvan Müller de (org.) Declaração Universal dos Direitos Lingüísticos, Campinas, SP: IPOL/Mercado das Letras, 2003.
PIMENTA, Daniel. Entrevista publicada em http://funredes.org/, 2005.
RODRIGUES, Aryon D’aligna., Línguas brasileiras : para o conhecimento das línguas indígenas. São Paulo, SP, Edições Loyola, 1986.
SILVA, Fábio Lopes da e MOURA, Heronides Maurílio de Melo (org.). O direito à Fala: a questão do patrimônio lingüístico. Florianópolis, Insular, 2002
Notas
[1] Este texto retoma apresentações feitas em alguns eventos, entre eles, o III Seminário Interamericano sobre a gestão das línguas "As políticas lingüísticas no âmbito das Américas em um mundo multipolar", Rio de Janeiro, Brasil, de 29-31 de maio de 2006. Uma primeira versão deste texto foi apresentada para publicação nas Atas desse seminário, que se encontra no prelo.
[2] O seminário sobre a criação do livro de registro das línguas foi realizado em março de 2006 em Brasília, com o objetivo de discutir a definição das formas de registro e dos modos de participação das instituições. Dele participaram falantes de seis línguas brasileiras (guarani, nheengatu, hunsrückisch, talian, gira da Tabatinga e libras), que se dirigiram ao plenário nas suas próprias línguas, e que discorreram sobre “ser brasileiro em outra língua que não o português”. Participaram do seminário também representantes de instituições e especialistas.
[3] Esse grupo é denominado Grupo Interinstitucional para o Reconhecimento da Pluralidade Lingüística Brasileira (GTLB) e é formado por instituições governamentais e não-governamentais relacionadas à matéria, com o objetivo de traçar políticas públicas que atendam às demandas das comunidades bilíngües brasileiras e que preservem e protejam o multilingüismo no país.
[4] Segundo Oliveira (2003), nenhum país da América Latina manteve tanta coerência entre o Diretório dos Índios do Marquês de Pombal - de 1753 - de um lado, e as 143 páginas de legislação anti-línguas produzido entre 1911 e 1945, recentemente compiladas pelo Ipol e que atingiu seu ponto alto na chamada “Campanha de Nacionalização do Ensino” do Estado Novo varguista. [5] O conceito de “língua brasileira” tem sido um conceito polêmico nas discussões do GTLB. A favor do conceito estão: a sua abrangência, capaz de recolher o fenômeno das línguas do Brasil na sua integralidade (superando as diferenças políticas entre línguas indígenas de um lado, e línguas de imigração (alóctones) ou afro-brasileiras por outro lado), e a sua signficância, trazendo a equivalência entre a política patrimonial brasileira, a cidadania brasileira e as línguas brasileiras, indicando assim que o Brasil é um país plural, como reza a Constituição Federal, e reconhecendo a realidade do pluralismo também para a vida lingüística do país. Que suas línguas sejam consideradas brasileiras, reconhecidas como legítimas no/do Brasil é demanda reconhecida das comunidades lingüísticas brasileiras que já tiveram a oportunidade de se manifestar sobre isso (por exemplo os falantes do talian).
Contra o conceito argumentou-se que alguma comunidade indígena pode não estar conforme que sua língua seja declarada brasileira (perceba-se no entanto que não se usa o termo em equivalência a “nacional”) e ainda que é inadequado dizer que uma língua é brasileira, se ela é falada também em outro país, como é o caso do guarani (embora nunca se saiba que Portugal tenha protestado porque o Brasil incluiu na sua constituição que o português é a língua oficial do Brasil, por exemplo). Não se conseguiu propor, entretanto, nenhum outro conceito com a operacionalidade do conceito “língua brasileira” para ancorar a política patrimonial ora em desenvolvimento. Como se trata de uma questão política importante, as comunidades lingüísticas brasileiras certamente dirão a última palavra sobre o assunto.
[6] Para mais informações sobre esse conjunto de iniciativas, consulte www.ipol.org.br.
[7] Em uma análise das Diretrizes do Programa Sociedade da Informação, do Governo Federal do Brasil, de 1999, mostramos que as políticas de tecnologia operam sobre e reproduzem uma divisão entre Educação e Educação para a Sociedade da Informação, acarretando diferentes modos de uso, tipos de conhecimento e formas de acesso do sujeito ao conhecimento. Cf. Morello (2004).
[8] O GTLB realizou diversas reuniões em Brasília durante o ano de 2006, e decidiu distinguir entre o inventário das línguas brasileiras, a ser feito para todas as línguas em tempo relativamente curto e o registro das línguas brasileiras, a ser feito depois do inventário, por demanda das comunidades lingüísticas. As discussões apontam para o fato de que o Inventário – isto é, o reconhecimento da existência da língua e sua nomeação – serão suficientes para garantir aos falantes daquela língua direitos lingüísticos cidadãos; o registro acrescentaria aos direitos auferidos pelo Inventário ainda uma explicitação da contribuição específica daquela língua e daquela comunidade lingüística na construção da cidadania plural brasileira.
Rosângela Morello é pesquisadora do Laboratório de Estudos Urbanos (Labeurb) da Unicamp. Gilvan Müller de Oliveira é pesquisador do Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Lingüística (Ipol) e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

 
Artigo
Línguas indígenas: situação atual, levantamento e registro
Denny Moore
1. Situação Atual
É fundamental ter os fatos sobre a situação atual das línguas indígenas brasileiras como base para qualquer planejamento do seu registro e da sua proteção. Realizamos dois levantamentos das línguas nativas do país usando várias fontes nos anos recentes. Um (Moore, 2005) reflete a situação no mesmo ano e o outro (Moore, 2006) tem os fatos sobre línguas da Amazônia em geral como foram conhecidos no ano 2001. Na pesquisa de fontes de informações para esses levantamentos, ficou evidente que o nosso conhecimento dos fatos é limitado e às vezes confuso. Um problema é a confusão freqüente entre línguas, dialetos e grupos étnicos. Por exemplo, na família Mondé do tronco tupi, a fala dos Gavião de Rondônia e a fala dos Zoró são geralmente listadas como línguas distintas, enquanto, de fato, são dialetos tão próximos quanto o português de Salvador e o português de São Paulo. Os falantes desses dialetos podem, dependendo das relações políticas do momento, afirmar que os dois dialetos são idênticos ou que são bem diferentes. Qualquer critério técnico para distinguir entre dialetos de uma mesma língua e línguas distintas tem os seus limites; todavia, lingüistas geralmente utilizam o critério de inteligibilidade mútua. Sem critérios desse tipo, esforços para registrar línguas podem se complicar com um número indefinido de formas de fala consideradas como línguas distintas. Nossa sugestão seria utilizar um critério técnico para agrupar dialetos da mesma língua, mas também obter informações sobre o sentimento dos falantes em relação às outras variedades e sobre a situação sociolingüística dos grupos envolvidos.
Se dialetos mutuamente inteligíveis não são considerados línguas distintas, o número de línguas indígenas brasileiras relatado por Moore (2006) seria 154 ou menos, e o número deve se reduzir com mais conhecimento. O grau de conhecimento científico dessas línguas, no ano 2001, foi, aproximadamente, o seguinte:

  • 9% descrição completa: descrição da gramática, coletânea de textos, dicionário
  • 23% descrição avançada: tese de doutorado ou muitos artigos
  • 34% descrição incipiente: dissertação de mestrado ou alguns artigos
  • 29% nada de importância científica
Dessas 154 línguas, 23% (Moore 2006) estão ameaçadas de extinção em curto prazo, devido aos seus números reduzidos de falantes e baixa transmissão à nova geração. A situação de muitas outras línguas é também bastante precária. O grau de perigo foi subestimado no passado, devido à falta de informações sólidas sobre línguas em regiões remotas e devido também a uma confusão entre o número de falantes (ou semi-falantes) da língua de um grupo e o tamanho da população do grupo. Por exemplo, segundo Rodrigues (1986:72 e 1993) o número de falantes da língua Yawalapiti é 135. Todavia, segundo Seki (1999:420) somente 13 Yawalapiti falam a língua. Como outro exemplo, segundo Rodrigues (1986:81 e 1993) há 256 falantes da língua Torá, e o número dado por Aikhenvald e Dixon (1999:343) é parecido: 250. Porém, segundo o website do Instituto Sócio-Ambiental, a língua Torá foi extinta uma geração atrás.
Línguas consideradas extintas às vezes ainda têm alguns falantes ou semi-falantes. Exemplos disto são Puruborá, com dois ou três semi-falantes, e Salamãy (Mondé), com uma semi-falante. Mesmo estas línguas com poucos falantes têm valor científico. A língua Baré, por exemplo, que perdeu seu último falante no Brasil alguns anos atrás, foi analisada como tendo aspiração intrínseca ao morfema—um fenômeno de muito interesse fonológico.
Várias línguas indígenas têm formas cerimoniais (freqüentemente antigas) que são muito estimadas pelos falantes, mas que são vulneráveis à perda por causa de mudanças culturais como, por exemplo, a introdução de religiões alheias. Os índios Apurinã tradicionalmente usaram uma forma cerimonial (Xangané) da sua língua na entrada de aldeias Apurinã consideradas distintas em termos políticos.
O primeiro passo para criar uma política pública para línguas indígenas pode ser a realização de um levantamento nacional para determinar os fatos relevantes sobre cada língua e a sua situação. Os dados para serem levantados incluem:
Os nomes da língua e dos grupos que a falam, incluindo os nomes usados pelos próprios povos e os nomes usados pela sociedade nacional, incluindo lingüistas.

  1. Os dialetos da língua, a distância lingüística entre eles, e as atitudes dos falantes sobre a relação entre as várias formas da língua.
  2. A população e localização dos grupos que falam variedades da língua
  3. O número de falantes e semi-falantes de cada variedade da língua.
  4. O grau de transmissão de cada variedade da língua.
  5. A afiliação da língua com troncos lingüísticos e famílias lingüísticas.
  6. Os estudos, publicados ou não, das variedades da língua.
  7. As gravações existentes de cada variedade da língua e a sua localização.
  8. As ortografias usadas para escrever as variedades da língua, a sua precisão lingüística e grau de funcionamento e os materiais escritos na língua.
  9. O grau de manutenção das tradições dos grupos falantes, especialmente das tradições orais e formas especiais da língua.
Em princípio, o levantamento seria dos fatos; os materiais, por exemplo, artigos científicos ou gravações, seriam fisicamente presentes em vários lugares.
2. A situação mundial de línguas em perigo de extinção e o movimento internacional em favor de documentação e manutenção
A situação das línguas no Brasil é típica da situação mundial. O movimento internacional em torno de línguas em perigo de extinção se intensificou com a publicação de um artigo pelo lingüista Michael Krauss (1992), que estimou que 90 % das línguas do mundo estariam em perigo de extinção no século XXI, se não fossem tomadas medidas preventivas. É importante evitar derrotismo e pessimismo excessivo; por exemplo, o hebraico hoje em dia é uma língua viva, falada pela população de Israel.
Dois programas internacionais apareceram nos últimos sete anos com o objetivo de patrocinar e estimular projetos de documentação e revitalização de línguas ameaçadas: o programa DOkumentation BEdrohter Sprachen (DOBES, da Fundação Volkswagen da Alemanha, www.mpi.nl/DOBES) e o Endangered Languages Documentation Programme (ELDP, Programa para a Documentação de Línguas Ameaçadas, patrocinado pela Lisbet Rousing Charitable Fund e administrado pelo School for Oriental e Asian Studies, Universidade de Londres, www.hrelp.org/grants). Mais recentemente, a Fundação Nacional para a Ciência dos EUA iniciou um programa para documentação também. Em parte por causa deste estímulo, há hoje em dia uma discussão internacional ativa sobre a metodologia de documentação e manutenção de línguas. Felizmente, vários projetos internacionais de documentação e a manutenção estão em progresso no Brasil, envolvendo 17 línguas:
Patrocínio DOBES:
Língua (tronco/família) Lingüista Instituição
Kuikúro (Karib) Franchetto Museu Nacional
Trumái (isolada) Guirardello MPI/Museu Goeldi
Awetí (Tupí) Drude Universidade Livre de Berlim/Museu Goeldi
Kaxuyána (Karib) Meira Universidade de Leiden/Museu Goeldi
Bakairí (Karib) Meira Universidade de Leiden/Museu Goeldi
Mawé (Tupí) Meira Universidade de Leiden/Museu Goeldi
Kaxinawá (Pano) Camargo CNRS

Patrocínio ELDP:
Puruborá (Tupí) Galucio Museu Goeldi
Sakurabiát (Tupí) Galucio Museu Goeldi
Ayuru (Tupí) Demolin Universidade Livre de Bruxelas/USP
Salamãy (Tupí) Moore Museu Goeldi
Apurinã (Aruák) Facundes UFPA
Ofayé (Macro-Jê) Ribeiro Universidade de Chicago/UFG
Kaduvéu (Guaykurú) Sandalo UNICAMP
Karo (Tupí) Gabas Museu Goeldi
Enawé Nawé (Aruák) de Resende Museu Nacional

Patrocínio NSF:
Piratapúya (Tukano) Stenzel Museu Nacional

Além desses projetos (todos quais estão sendo feitos por brasileiros ou por lingüistas lotados em instituições brasileiras), cujo foco é mais documentação do que pesquisa, há projetos menores apoiados por fontes nacionais ou pela Endangered Languages Fund (Fundo para Línguas Ameaçadas). Existe uma diferença entre uma pesquisa tradicional de uma língua com poucos falantes e um projeto cujo foco é a documentação moderna desta mesma língua—o que corresponde ao registro feito pelo Iphan de patrimônio imaterial. Um aspecto da nova onda de projetos de documentação que é significativo para o registro de línguas é que eles utilizam tecnologia digital para realizar gravações de alta qualidade a baixo custo. Por exemplo, vídeos podem ser gravados em fitas mini-DV e transferidos diretamente para micro computadores, para edição e gravação em DVD. Gravadores do tipo Hi-MD gravam áudio em arquivos digitais que podem ser transferidos diretamente para micro-computadores para processamento. Existem softwares especiais para a transcrição de gravações de áudio e vídeo, bem como softwares para a catalogação do conteúdo de gravações. Ainda existem questões da migração de gravações—como maximizar as chances de transferir as gravações e transcrições para novos meios de armazenagem quando os meios atuais forem obsoletos.
Arquivos informatizados de documentação lingüística existem em muitos países. Interessantemente, 95% das consultas aos arquivos lingüísticos na Austrália são feitas por nativos. Nos Estados Unidos, até as gravações feitas em cilindros de cera por antropólogos no início do século XX estão sendo procuradas por grupos indígenas querendo recuperar o que eles podem da sua língua. Um princípio de documentação atual é que as gravações devem estar disponíveis à comunidade indígena, que deve indicar os assuntos mais interessantes para documentação.
3. Revitalização e manutenção lingüística
Além de registrar e documentar línguas, há a questão de revitalização e manutenção de línguas. Métodos sendo utilizados mundialmente incluem os seguintes:

  1. Ninho de linguagem. Crianças, que aprendem línguas sem esforço, poderiam ficar com os avôs durante certos períodos, falando somente na língua nativa.
  2. Mestre e aprendiz. Um falante assume a responsabilidade de ensinar um jovem na língua. Os dois trabalham juntos na tarefa como achem necessário.
  3. Imersão. Durante um certo período a comunidade ou uma parte da comunidade fala somente na língua e os não falantes têm que adquirir um mínimo da língua para se comunicar nesses períodos.
  4. Alfabetização na língua materna. Materiais escritos na língua geralmente aumentam o prestígio da língua e chamam o interesse da geração mais jovem.
  5. Gravações de documentação. Músicas, narrativas tradicionais e outros materiais podem ser gravados e devolvidos à comunidade indígena para familiarizar os ouvintes com a língua e estimular tradições.
4. Referências:
Aikhenvald, Alexandra Y. e R. M. W. Dixon. 1999. Other small families and isolates. In The Amazonian languages, ed. por R. M. W. Dixon e Alexandra Y. Aikhenvald. Cambridge: Cambridge University Press.
Krauss, Michael. 1992. The world’s languages in crisis. Language 68:4-10.
Moore, Denny. 2005. Brazil: Language situation. In Encyclopedia of languages and linguistics, 2ª edição, ed. por Keith Brown, vol. 2: 117-127. Amsterdã: Elsevier.
____. 2006. Endangered languages of Lowland Tropical South America. In Language Diversity Endangered, ed. por Matthias Brenzinger. Berlim: Mouton de Gruyter. No prelo.
Rodrigues, Aryon D. 1986. Línguas brasileiras: para o conhecimento das línguas indígenas. São Paulo: Edições Loyola.
____. 1993. Endangered languages in Brasil. Comunicação apresentada no Symposium on endangered languages of South America, Rijksuniversiteit, Leiden.
Seki, Luci. 1999. The Upper Xingu as an incipient linguistic area. In The Amazonian languages, ed. por R. M. W. Dixon e Alexandra Y. Aikhenvald. Cambridge: Cambridge University Press

Reportagem
Diversidade verde-amarela
Inventário irá reconhecer a pluralidade lingüística do país, atendendo às reivindicações de políticas públicas para o setor
Carolina Cantarino
Está prevista para o próximo mês de março a divulgação do relatório final do grupo de trabalho que discutiu a possibilidade da criação de um Livro de registro das línguas no âmbito da política de patrimônio imaterial do Iphan. Uma das medidas a serem anunciadas é a criação de um Inventário Nacional das Línguas Faladas no Brasil que deverá contemplar línguas indígenas, afro-brasileiras e de imigrantes, além das variedades do próprio português. O Ministério da Cultura deve discutir ainda a possibilidade de o inventário ganhar um reconhecimento legal através de algum dispositivo jurídico. Ou seja, trata-se de um inventário e não de um livro de registros das línguas já que, segundo o decreto 3551/00 que dispõe sobre a política de registros de bens imateriais, cabe ao Conselho Consultivo do Iphan, em última instância, a criação de um novo livro. Atualmente, os bens reconhecidos como patrimônio imaterial podem ser inscritos no Livro de Registro dos Saberes; das Celebrações; das Formas de Expressão ou dos Lugares. Os registros de patrimônio cultural imaterial mais recentes são os da Feira de Caruaru (PE) – no Livro dos Lugares - e o Frevo – no das Formas de Expressão.
O debate sobre a necessidade da diversidade lingüística brasileira ser reconhecida como patrimônio cultural teve impulso em março 2006, com a realização do Seminário Legislativo sobre a Criação do Livro de Registro das Línguas. O evento foi promovido pela Comissão de Educação da Câmara dos Deputados com o apoio do Iphan e do Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Lingüística (Ipol). Além dessas instituições, estiveram presentes lingüistas e outros especialistas da área da linguagem, bem como representantes de diversas comunidades lingüísticas tais como falantes de mbiá-guarani; da gíria da Tabatinga (uma língua afro-brasileira); do hunsruckisch (uma variação do alemão falada no sul do país); do talian (variação do italiano); e da Língua Brasileira de Sinais (Libras).
“O seminário deixou evidente para especialistas, falantes e instituições envolvidas, a necessidade de se instituir um trabalho de reconhecimento da pluralidade lingüística brasileira”, conta Márcia Sant'Anna, diretora do Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan. Por conta disso, foi criado um grupo de trabalho, que reuniu uma série de instituições: Universidade de Brasília, Museu Emílio Goeldi, Fundação Cultural Palmares, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) do Ministério da Educação (Mec), Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, Ipol, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do Iphan. Ao longo do ano de 2006, o grupo realizou uma série de reuniões nas quais foi decidida a metodologia que deverá ser empregada no inventário. “Esperamos que 2007 seja o ano do reconhecimento da diversidade lingüística brasileira”, aguarda Sant'Anna, que coordena o grupo.
Invisibilidade
A valorização dessa diversidade lingüística passa, assim, segundo Sant'Anna, pelo reconhecimento das línguas como objeto de políticas públicas e como patrimônio cultural brasileiro que merece ser mais divulgado, já que o seu conhecimento tende a ficar restrito às universidades, aos lingüistas e aos grupos falantes.“Vejo o registro das línguas minoritárias brasileiras como primeiro passo na direção de tirar da clandestinidade simbólica esse patrimômio imaterial brasileiro, as diversas línguas que são formas de vida em muitas comunidades deste país”, afirmou, durante o seminário realizado na Câmara, Pedro Garcez, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e membro do Ipol.
Mais de 200 línguas, além do português, são faladas no Brasil: cerca de 190 línguas indígenas e 20 línguas de comunidades descendentes de imigrantes. Mas, além delas, é preciso conferir visibilidade também às variações no próprio modo de falar o português. “Todos esses contextos bilíngües são de alguma forma também “bidialetais”, pois contemplam alguma variedade de baixo prestígio do português ou de outra língua lado a lado com a variedade de português convencionada como padrão”, lembra Marilda Cavalcanti, professora do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Nesse sentido, a autora afirma que a maioria das escolas públicas brasileiras também podem ser consideradas como bidialetais, na medida em que existem variedades regionais, sociais e estilísticas do português falado pelos estudantes. Em artigo sobre educação bilíngüe em contextos de minorias lingüísticas, Cavalcanti retoma o debate sobre os conceitos de “língua” e “dialeto” para afirmar que não existe consenso entre os lingüistas a respeito da diferença entre eles. Para alguns, o termo dialeto carrega, popularmente, uma conotação pejorativa, como se fosse “menor” em relação à língua, que seria o “padrão”. Para muitos, o termo dialeto é aplicável a todas as variedades do português, inclusive àquela considerada padrão, mais próxima da escrita.
Outras iniciativas
Muitas universidades brasileiras já desenvolvem projetos voltados para a pesquisa e o mapeamento das línguas faladas no Brasil. O projeto Vertentes do Português Rural do Estado da Bahia, coordenado por Dante Lucchesi, professor do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (UFBa), vem construindo, desde 2001, um acervo de dialetos rurais coletados, principalmente, no interior do estado. O objetivo é pesquisar esses falares rurais, buscando sua história e os processos de contato entre a língua portuguesa e línguas indígenas e africanas. A ênfase do projeto tem sido no chamado “português afro-brasileiro” e a metodologia privilegiada é a gravação digital, para que a língua falada seja registrada em seu contexto social. No site, do projeto é possível ouvir dona Ana Isidora, moradora de uma comunidade remanescente de quilombo.
Outra iniciativa é o projeto Atlas Lingüístico do Brasil (AliB), que reúne uma série de pesquisadores da área de dialectologia de todo o país. Lançado em 1996, a proposta é realizar um mapeamento geolingüístico dos diferentes dialetos falados em cada um dos estados brasileiros. A meta é alcançar o registro de uma rede de 250 pontos, que reúne as capitais (com exceção de Palmas e Brasília), diversas cidades espalhadas pelo país e questionários aplicados a 1100 informantes. “A partir daí, cumpre fazer retornar à comunidade científica e à sociedade interessada os resultados do trabalho que mostrarão os veios do português brasileiro, as áreas em que podemos nos dividir e nos identificar, as interfaces desses resultados com outros ramos do conhecimento científico e, por último, mas não em último lugar, mostrar, esperamos, que somos diversificados no uso da língua, que os direitos lingüísticos do cidadão devem ser respeitados, que a escola não pode ignorar as diferenças, mas também que, por sobre tudo, somos usuários da língua portuguesa”, afirma Suzana Alice Marcelino Cardoso no livro A geolingüística no Brasil: trilhas seguidas, caminhos a percorrer , publicação que reúne artigos de pesquisadores de diversas universidades brasileiras nos quais são descritos a metodologia e o andamento dos atlas lingüísticos de estados como a Bahia, Minas Gerais, Paraíba, Sergipe, Paraná, Maranhão, dentre outros.


Reportagem
Uma língua, múltiplos falares
Língua do colonizador, português foi imposto e virou exemplo da unidade nacional. No processo, incorporou mudanças que refletem a história
Patrícia Mariuzzo
No Brasil, convivemos não somente com várias línguas que resistem, como com vários jeitos de falar. Os mais desavisados podem pensar que os mineiros, por exemplo, preferem abandonar algumas palavras no meio do caminho quando perguntam “ôndôtô?” ao invés de “onde eu estou?”. Igualmente famosos são os “s” dos cariocas ou o “oxente” baiano. Esses sotaques ou modos de falar resultam da interação da língua com uma realidade específica, com outras línguas e seus falantes. É dessa interação que surgiram no Brasil as línguas gerais à época da colonização portuguesa ou as línguas criolas na África. Todas as línguas são em si um discurso sobre o indivíduo que fala, elas o identificam. A língua que eu uso para dizer quem eu sou já fala sobre mim, é, portanto, um instrumento de afirmação da identidade. “As línguas são objetos históricos e estão sempre relacionadas inseparavelmente daqueles que as falam. É por isso que são elementos fortes no processo de identificação social dos grupos humanos”, explica Eduardo Guimarães, lingüísta da Universidade Estadual de Campinas. Desde suas origens, o Brasil tem uma língua dividida em falares diversos. Mesmo antes da chegada dos portugueses o território brasileiro já era multilíngue. Estimativas de especialistas indicam a presença de cerca de 1,2 mil línguas faladas pelos povos indígenas. O português trazido pelo colonizador tampouco era uma língua homogênea, havia variações dependendo da região de Portugal de onde ele vinha. Há de se considerar também que a chegada de falantes de português acontece em diferentes etapas, em momentos históricos específicos. Na cidade de São Paulo, por exemplo, temos primeiramente o encontro linguístico de portugueses com índios e, além dos negros da África, vieram italianos, japoneses, alemães, árabes, todos com suas línguas. “Todo este processo vai produzindo diversidades lingüísticas que caracterizam falares diferentes”, afirma Guimarães. Daí que na mesma São Paulo pode-se encontrar modos de falar distintos como o de Adoniram Barbosa, que eternizou em suas composições o sotaque típico de um filho de imigrantes italianos, ou o chamado erre retroflexo, aquele erre dobrado que, junto com a letra i, resulta naquele jeito de falar “cairne” e “poirta” característico do interior de São Paulo.
Minha pátria é minha língua
Independentemente dessas peculiaridades no uso da língua, o português, no imaginário, une. Na verdade, a construção das identidades nacionais modernas se baseou num imaginário de unidade linguística. É daí que surge o conceito de língua nacional, língua da nação, que pretensamente une a todos sob uma mesma cultura. “O processo de constituição dos Estados-Nação modernos se inicia numa relação com os espaços de enunciação multilíngues e constrói, como um de seus elementos, uma unidade lingüística”, explica Guimarães. Esta unidade se constitui a partir de instrumentos muito particulares como gramáticas e dicionários e de instituições como a escola. “O funcionamento de uma língua enquanto língua nacional se faz pela produção de um imaginário de unidade e de identidade para um povo”, completa.
Conforme sua distribuição entre os falantes as línguas entram em algumas categorias: língua materna é a que se fala no local em que se nasce, a primeira língua; franca é a língua praticada por grupos de falantes de línguas maternas diferentes; língua nacional, como foi dito acima, é a língua de um povo que dá a seus falantes a sensação de pertencer a um povo e finalmente, língua oficial que é a língua do Estado, obrigatória, portanto, nas ações formais deste Estado. Segundo o professor da Unicamp, as duas primeiras tratam de relações do cotidiano e as duas últimas tratam das relações imaginárias, ideológicas e institucionais. O imaginário de unidade da língua oficial e nacional sobrepõe-se à língua materna. Isto é parte do processo político de dominação, que faz com que outras línguas sejam significadas por um caráter de inferioridade. “O falante é tomado por uma divisão política dos lugares sociais como falante de uma língua que não é a língua que o identifica imaginariamente como parte de um povo”, explica o linguísta. No Brasil, hoje, o português é a língua oficial e nacional e também a língua materna da maioria dos brasileiros. Entretanto, nem sempre foi assim.
As línguas gerais
No longa Desmundo, de Alain Fresnot, que se passa por volta de 1570, a jovem órfã portuguesa Oribela é enviada ao Brasil para se casar com um colonizador que aqui vivia. Trata-se entretanto, de uma exceção porque a grande maioria dos colonos que vinham de Portugal para o Brasil eram homens sozinhos que passavam a viver com mulheres indígenas. Segundo Aryon Rodrigues, do Laboratório de Línguas Indígenas da Universidade de Brasília, dessa situação resultou uma população mestiça, cuja língua materna era a língua indígena das mães já que do lado dos pais, em geral, não havia parentes. “As chamadas línguas gerais se desenvolveram no Brasil a partir de línguas indígenas mais ou menos influenciadas pela língua do colonizador e, apesar de não terem sido a língua franca em todo o Brasil, foram a língua materna da população ou de parte da população colonizada por um longo período”, aponta ele. Duas línguas gerais desenvolveram-se no Brasil, a paulista, do contato de portugueses e mulheres tupi em São Paulo, e a amazônica, do contato de pais portugueses e mães tupinambás no Maranhão e no Pará.
Uma língua só desaparece quando as pessoas que a falam são forçadas a adotar outra língua. Em 1757, o Marques de Pombal institui o português como língua oficial no Brasil e proíbe o uso das línguas gerais. “Para os povos indígenas, a situação de contato forçado é caracterizada pela penetração em seus territórios tradicionais de um povo agressivo e melhor equipado militarmente”, explica Rodrigues. Diante da impossibilidade de resistência, o povo dominado busca aprender a língua dos invasores de modo a assegurar um relacionamento positivo com eles. Em geral, são adultos mais jovens do sexo masculino que tomam essa iniciativa e que passam a ser vistos pelos dominadores como pessoas importantes e representativas da sua comunidade, embora não tenham essa posição ou o reconhecimento dos mais velhos.
Segundo o pesquisador, por mais pobre que seja o domínio da língua do colonizador por esses intermediários, todos os membros do grupo vêem que é esse conhecimento lingüístico que é valorizado pelos dominadores, sejam estes funcionários governamentais (como os da Funai) ou missionários (como os católicos e os evangélicos). “Por isso, mais e mais pessoas se interessam em usar a língua dos conquistadores, com conseqüente perda de domínio da língua e da cultura nativas, graves desajustes na comunicação entre as gerações - freqüentemente com interrupção ou diminuição da transmissão de conhecimentos tradicionais, somada a uma limitada percepção dos conhecimentos da cultura do povo dominante”, completa.
Quando os portugueses chegaram ao Brasil havia cerca de 1,2 mil línguas indígenas aqui. Hoje, são 180. Um passo importante para assegurar a permanência do que resta da língua e cultura indígena no país foi a Constituição de 1988, que permitiu a existência de escolas bilíngues para os índios. Até então a educação fundamental antes deveria ser feita, obrigatoriamente, na língua nacional, ou seja, o português. Isto excluía qualquer outra língua. “A situação era drástica. Ignorava-se o índio simplesmente”, conta Rodrigues. Para ele, apesar de haver discrepâncias na qualidade do ensino bilíngüe nas diversas comunidades indígenas espalhadas no país, houve grandes avanços. Um deles, por exemplo, foi concretizado com o primeiro curso bilíngüe de licenciatura para professores indígenas do Alto Solimões ministrado numa das aldeias dos índios tikuna, a maior do Brasil, com cerca de 30 mil índios. “É importante preparar os jovens índios para trabalhar e viver nas suas próprias comunidades, evitando que eles abandonem seu lugar de origem”, acredita Rodrigues.
Mesmo que a tentativa de unificação lingüística tenha se produzido de modo maciço, como aconteceu no Brasil, a diversidade permanece, resultado do trabalho de resistência dos falantes das línguas dominadas. Na Espanha, por exemplo, existem três línguas oficiais regionais: o galego, o catalão e o basco, sendo esta última uma língua cuja história começa antes da chegada do latim à Península Ibérica e que resiste até hoje.
O Canadá também é bilíngüe, com duas línguas oficiais: o inglês e o francês. Ingleses e franceses lutaram entre si no Canadá por quase oitenta anos. Em 1763, um tratado de paz reconhece o domínio britânico no território mas, mesmo derrotada, a população de origem francesa conquistou por lei o direito de preservar sua língua. “A língua é o mais forte elemento de identidade dos grupos humanos, pois, além de ser o instrumento familiar de comunicação desde a primeira infância até a velhice, que consolida as relações sociais entre todos os membros do grupo, é o código único em que estão registrados todos os conhecimentos culturais que asseguram a sobrevivência sadia desse grupo”, afirma Rodrigues.

Reportagem
A (mu)dança das línguas
Subordinação social é acompanhada por subordinação linguística. Empréstimos e incorporação de termos refletem economia e política
Patrícia Mariuzzo
No mundo globalizado, pessoas, governos e empresas trocam idéias, realizam transações financeiras e comerciais e espalham aspectos culturais pelos quatro cantos do planeta. Esse processo de integração, que se apóia fortemente nas tecnologicas de informação, em especial a Internet, praticamente impõe o inglês como língua internacional de comunicação. Embora esse fenômeno seja mais frequentemente associado ao final do século XX, ele não é recente. A novidade, no atual estágio da globalização, é seu nível de abrangência e profundidade. Diante desse contexto é que surge a a idéia de que certas línguas - entre elas o português - tendem a desaparecer frente ao domínio econômico e cultural representado pela língua inglesa. Na contramão desse pensamento, que supõe a generalização da língua ditada por forças econômicas, outros pesquisadores apostam na capacidade de adaptação e resistência das línguas e das culturas nas quais elas estão imersas. A mudança está na essência da construção linguística e, antes de ser um sinal de enfraquecimento, demonstra sua capacidade de permanência. Em 1492, ano da chegada de Cristóvão Colombo às Américas, o estudioso Elio Antonio de Nebrija organizou a primeira gramática de uma língua moderna, a Gramática Castelhana. Ele apontava a importância da popularização da língua dos conquistadores na construção do império espanhol. Por meio dela, seria possível estabelecer unidade e manter o controle sobre os povos conquistados. Luiz Paulo da Moita Lopes, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, afirma que era essa a inspiração que guiava Nebrija ao presentear a rainha Isabel de Castela com a gramática. “As línguas sempre foram companheiras de impérios”. Línguas francas sempre foram necessárias nas atividades de comércio e na gerência política dos povos. Segundo ele, foi assim também com a língua nahuatl, falada pela tribo mais poderosa do império asteca e que funcionava como língua franca, reinando acima das 80 línguas diferentes. “Esses processos que, em alguns casos, já têm mais de dois mil anos, guardam semelhanças com o papel desempenhado pelo inglês hoje”, acredita Lopes.
Inglês: novo esperanto?
O inglês estaria hoje, para nós, como o latim esteve, no passado, para os povos periféricos à Roma. Prevalecem, nesse domínio, interesses econômicos e políticos. Para Carlos Vogt, da Unicamp, essa é a lógica do processo de globalização da economia e uma de suas consequências culturais: à necessidade de homogeneizar mercados e estabilizar moedas, para a livre circulação do capital financeiro, associa-se a harmonização de comportamentos e padrões culturais de conduta social. “Isso cria as condições objetivas para que as resistências nacionalistas ligadas ao sentimento forte de nacionalidade dêem lugar a um sentimento crescente de fidelidade empresarial sem fronteiras”, analisa o linguista.
“A língua não é neutra e nem está acima das lutas sociais, mas, ao contrário, é perpassada por estas lutas, é expressão delas e toma parte nelas”, diz o sociólogo Nildo Viana, da Universidade Estadual de Goiás (UFG), em artigo publicado na revista Humanidades em Foco (ano 2, n.4). Isso explicaria porque tentativas anteriores de estabelecer línguas internacionais de comunicação falharam. No final do século XIX, por exemplo, um ideal de universalidade lingüística inspirou a criação de algumas línguas artificiais, sendo o esperanto possivelmente a mais conhecida. Essas línguas são chamadas de artificiais porque não são um produto coletivo de determindada sociedade, mas de certos indivíduos. Na época, alegava-se em favor dessas línguas o fato de serem de fácil aprendizado e de obedecerem regras regulares e lógicas (o esperanto possui apenas 16 regras gramaticais, sem excessões). Além disso, não sendo de domínio de nenhuma cultura ou nação, não haveria interesses hegemônicos, econômicos ou comerciais envolvidos. Segundo Moita Lopes, os interesses do império britânico do século XIX e do início do século XX, combinados com o desenvolvimento industrial da Grã-Bretanha, assim como os interesses do império norte-americano no século XX, acoplados à globalização econômica do final do século XX e início do século XXI, solaparam o sonho de uma língua universal independente de objetivos imperialistas. No começo do século XX, vários países ensaiaram introduzir o ensino no esperanto nas escolas, inclusive o Brasil, porém nenhum levou a idéia adiante.
O português vai desaparecer?
Em vários países existe uma apreensão diante do crescimento do inglês e da diminuição do uso das línguas nacionais. Na França, por exemplo, é obrigatório que as palavras em inglês sejam traduzidas nos anúncios. No Brasil, há alguns anos, o tema gerou um projeto de lei (1676/99), de autoria de Aldo Rebelo. Ele queria coibir o uso de estrangeirismos “que deformam a língua e truncam a comunicação do povo”, nas palavras do deputado.
Em muitas situações o uso de termos estrangeiros se torna um problema concreto. Em janeiro deste ano a questão foi parar nos tribunais. Numa ação movida pelo Ministério Público (MP), o juiz determinou que a União fiscalize e faça cumprir o artigo 31 do Código de Defesa do Consumidor que prevê, entre outras medidas, que, no momento da oferta, haja clareza de informação. O autor da ação, o procurador da república Matheus Baraldi Magnani, disse que o MP recebeu diversas reclamações sobre o uso das palavras sale e off, no lugar de liquidação e desconto. Entrevistas com 280 pessoas em centros comercias detectaram que 90% das pessoas não entendiam o significado dos anúncios em inglês.
Mário Perini, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), considera exagerada a invasão de termos ingleses na língua portuguesa. “O Brasil é um país subalterno e a língua expressa isso. É como se me dissessem o tempo todo que minha cultura, não minha língua, é inferior”, aponta. É mais fácil entender isso se pensarmos, como Viana, que a linguagem é um fenômeno social ligado ao processo de dominação. A subordinação social é acompanhada por uma subordinação linguística. No Brasil, o sistema colonial e depois o capitalismo reproduzem a diferença no poder.
Mário Perini não acredita, entretanto, que os empréstimos estrangeiros sejam uma ameaça à língua portuguesa. Segundo ele, muitos estrangerismos desaparecem com o tempo e, os que ficam, são assimilados ou aportuguesados. “Os falantes tem um bom senso inato que os impede de utilizar termos estrangeiros além de um certo limite. Por isso, as palavras emprestadas são muito efêmeras”, acredita. Embora concorde que a influência norte-americana é incontestável cultural e economicamente, ele não vê consequências drásticas no campo linguístico.
A hibridização é um processo que acompanha o desenvolvimento das línguas. A língua muda para acompanhar as transformações sociais e culturais, os avanços tecnológicos, os movimentos artísticos. O fenômeno de empréstimo de palavras, como sales, parking, ou o aportuguesamento de palavras em inglês no português contemporâneo, que acontece em salvar e deletar, também ocorrem em outras línguas, inclusive no próprio inglês (grande número de palavras inglesas tem origem no francês: beef, liberty, page, etc). A língua portuguesa também emprestou palavras para outros idiomas. Não foram muitas pois, como dito, para que uma língua influencie outras é necessário alguma relação de domínio político ou cultural. No Oriente, os portugueses foram o primeiro povo conquistador europeu deixando, com isso, algumas marcas no híndi: mês é mesa, camiz é camisa. Em japonês, liburo signfica livro.
Isso acontece o tempo todo com as línguas e, antes de ser uma ameaça, é um sinal de que estão vivas e que se adaptam para continuar a existir. “O ser humano tem muito apego à sua língua porque ela os distingue, como povo, do resto do mundo”, defende Perini. Na Suécia, a grande maioria das pessoas fala inglês fluentemente. Mesmo assim conservam o sueco como sua língua materna. Enquanto no Brasil a presença da cultura norte-americana ganha força a partir dos anos 60, na Irlanda a influência inglesa existe desde a Idade Média sem que o irlandês tenha desaparecido. “A língua é o aspecto mais entranhado e menos mutável da cultura de um povo”, completa o pesquisador. Prova disso é que a segunda língua mais falada no Brasil não é o inglês ou o espanhol, mas o japonês, falado pela numeroso grupo de japoneses que vive no Brasil e que, provavelmente, se apega à sua língua materna como uma das formas de manter viva aqui a tradição nipônica.
Reportagem
Poder e preconceito
Valorização da diversidade lingüística brasileira também passa pelo combate ao preconceito às variações no português criadas no país
Carolina Cantarino
Línguas indígenas. Línguas de origem africana faladas nos terreiros de candomblé e umbanda. Diversas comunidades de descendentes de imigrantes japoneses, alemães, italianos. O Brasil possui um rico cenário lingüístico e não é um país de uma única língua: os brasileiros não falam somente o português, como muitos gostam de imaginar. A polêmica é que, para muitos lingüistas, é preciso reconhecer e valorizar não só essas diversas línguas, além do português, faladas no Brasil, mas também as variações no próprio idioma, um patrimônio menosprezado.“Nossa identidade enquanto brasileiros passa pela valorização das variedades geográficas do português e também pelo reconhecimento das variedades sociais”, afirma Marta Scherre, lingüista e professora adjunta da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Os sotaques regionais. As gírias e expressões criadas por jovens e outros grupos. Os empréstimos e as recriações de outras línguas no interior da “língua de Camões”. O “você” que vira somente “cê”, dentre milhares de outras palavras e expressões criadas pelos brasileiros no seus falares cotidianos. Língua é identidade e cultura e a valorização desses diferentes modos de se falar o português depende do combate a um fenômeno pouco debatido na sociedade brasileira: o preconceito lingüístico.
Linguagem também é poder, e isso vale ainda mais numa sociedade desigual. Escrita e fala são hierarquizadas. No Brasil, a gramática e os dicionários são valorizados porque muito do que foge às normas e prescrições do português escrito é considerado “errado” ou “inferior”. Valores sociais são atribuídos aos diferentes modos de falar porque a escrita tende a ser vista como a essência da linguagem e, por isso, como o seu padrão mais “correto”. A variação e a mudança, que são inerentes a qualquer língua do mundo, são vistas como “ameaças” ao idioma. Mas a escrita de nenhuma língua corresponde diretamente aos diferentes modos de falá-la. Daí é que advém sua riqueza.
Para Scherre, é preciso considerar a linguagem no interior das relações sociais e, nesse sentido, sua ligação com a questão da desigualdade e da exclusão social. Por isso, a lingüista faz questão de lembrar que nem todas as variações lingüísticas que não atendem às regras gramaticais são estigmatizadas. Um exemplo seriam as variações no uso do imperativo que tendem a ser socialmente aceitas, ao contrário das variações na marcação do plural, estigmatizadas como “erradas” ou “feias” porque denunciam a origem social do falante. Nesse sentido, as variações na concordância de número chamam a atenção e tendem a ser ridicularizadas porque marcam a distinção entre classes sociais, entre pobres e ricos. Outro exemplo seria o chamado “r retroflexo” (o conhecido “r caipira”) que, ao ser utilizado em certas regiões do país evidencia, muitas vezes, a hierarquia entre o mundo rural e o urbano.
Em seu livro Doa-se lindos filhotes de poodle: variação lingüística, mídia e preconceito, Scherre analisa como o preconceito lingüístico pode ser facilmente percebido na mídia, no despreparo dos jornalistas para lidar com as variedades lingüísticas regionais e sociais e em sua intolerância com a linguagem coloquial. Jornais e revistas, de modo geral, têm aversão às formas não-gramaticais. “A sociedade como um todo dissemina o preconceito lingüístico. A mídia é só uma expressão disso. Não entendo como ela pode passar impune. Trata-se, no mínimo, de uma questão de responsabilidade”. Segundo Scherre, mais do que aceito, o preconceito lingüístico é corroborado pela sociedade. “Em termos legais, as pessoas não podem ter preconceito de raça, de credo ou religião, mas o preconceito lingüístico é tolerado e até tido como algo ‘natural’. A sociedade não só aceita, ela também legitima essa forma de preconceito”.
Direitos lingüísticos
Um dos indícios de que a sociedade brasileira ainda é muito tolerante em relação ao preconceito lingüístico diz respeito ao próprio tratamento recebido pelos lingüistas e sua área de conhecimento. Ao defenderem os diferentes modos de falar o português e as manifestações lingüísticas populares como patrimônio do país, os lingüistas, muitas vezes, acabam sendo acusados de “destruir” o idioma. “Não se trata de ser ‘muito liberal’ ou ‘relativista’. Trata-se de respeitar a fala do outro, sendo assim, mais democrático”, defende Scherre.
Marcos Bagno, lingüista e professor da UnB, lembra que alguns veículos de comunicação não valorizam a lingüística como uma área de investigação científica da linguagem, e acabam dando mais espaço para aqueles que ele chama de “comandos paragramaticais”, pessoas sem formação apropriada que desempenham o papel de guardiães da língua, vendendo fórmulas de "português certo" como produto de consumo, uma espécie de "auto-ajuda gramatical". “Os 'comandos paragramaticais' conseguem tanto sucesso porque existe na nossa cultura uma ideologia lingüística que condena os brasileiros em geral por 'não saber português', que apregoa que 'o português é uma das línguas mais difíceis do mundo' e outras superstições infundadas. Numa sociedade já tão convencida de que não sabe falar a própria língua materna (um absurdo do ponto de vista lógico), fica fácil vender as quinquilharias gramatiqueiras”.
Educação e linguagem
Além da mídia, seria preciso lutar contra o preconceito lingüístico disseminado pela escola. Segundo Marcos Bagno, há mais de dez anos, com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, instâncias como o Ministério da Educação já incorporaram em suas políticas educacionais os principais conceitos da sociolingüística. O desafio, agora, é a capacitação dos professores de português. Para Bagno, os cursos de pedagogia e letras, de modo geral, não preparam o docente para utilizar os novos materiais didáticos que vêm sendo produzidos. “Os cursos de formação continuam presos a currículos enferrujados, fingem que não se destinam à formação de docentes, e o próprio nome do curso de ‘letras’ remete ao século XIX, senão antes. Por isso, e com o desserviço da mídia (que só veicula idéias atrasadíssimas sobre língua e ensino), a escola permanece o foco principal de cultivo e preservação do preconceito lingüístico.”, afirma o lingüista.
A formação dos professores, segundo Bagno, passa pela introdução de novos conceitos lingüísticos. “A grande missão da educação lingüística, neste século, está sintetizada na noção de letramento, isto é, a inserção plena do cidadão no mundo da cultura letrada, por meio da prática ininterrupta e consistente da leitura e da escrita”. Nesse sentido, a escola deveria ser o espaço de questionamento de alguns mitos tais como o que de existe um único modo “correto” ou “certo” de falar: aquele que se aproxima mais da escrita; e o de que a escrita é o espelho da fala e, por isso, seria necessário “consertar” o modo de falar dos alunos.
Mas e o ensino da chamada norma culta do português? Certamente a escola privilegia a variedade normativa do português e, por isso, tende a reproduzir o preconceito lingüístico. Mas ela é importante por ser um espaço no qual os estudantes têm a possibilidade de ter acesso ao chamado padrão culto da língua, o que não significa apenas aprender a gramática normativa. “É lendo e escrevendo que a pessoa entra em contato não só com a norma-padrão, mas com todas as outras variedades de língua escrita, presentes nos mais diversos gêneros textuais que circulam na sociedade. Enquanto houver a crença de que é preciso 'ensinar gramática', vamos continuar nesse pântano de incompreensões e de frustrações, porque nem conseguimos fazer o aluno 'aprender gramática' nem o levamos a aprender a ler e a escrever decentemente, que é o que de fato importa”, afirma Bagno.
A insistência na valorização apenas do chamado padrão culto do português, em detrimento de outros modos de falar e escrever a língua, prejudicaria a aprendizagem de um modo geral ao reforçar a distância e a hierarquia entre educadores e alunos. Foi o que a professora, licenciada em letras, Ione da Silva Jovino, constatou ao pesquisar a relação entre a escola e os alunos adeptos do hip hop em sua dissertação de mestrado, intitulada “Escola: as minas e os manos têm a palavra”. Num colégio da periferia da cidade de São Paulo, a pesquisadora observou a existência de um confronto entre a escolarização formal, defendida pelos professores, e as práticas culturais dos estudantes tais como as letras de rap, cada vez mais presentes nas redações escolares. Para Jovino, os educadores tendem a desprezar o potencial pedagógico do hip hop e acabam abrindo mão de utilizar o universo cultural dos alunos em prol da continuidade de sua aprendizagem, dentre outros, do próprio português.
O objetivo da pesquisa de Jovino era analisar o que os jovens do hip hop tinham a dizer sobre a escola. Para a surpresa da própria pesquisadora, as falas dos alunos foram sempre carregadas de positividade. “É como se a violência, a falta de limpeza, o desprestígio e outros problemas pudessem ser momentaneamente abandonados, retirados dali, para que restasse apenas uma Escola. Escola assim, com letra maiúscula, no sentido mais amplo possível. Eles se compadecem dessa Escola, separando-a de seus problemas e insucessos, vendo nela apenas a positividade que só uma Escola, qualquer Escola pode ter”, lembra Jovino.
A escola, assim, é concebida por esses estudantes como uma oportunidade para se obter informação e conhecimento, como meio de ascensão social e de qualificação para o mundo do trabalho. Esses mesmos significados, segundo a pesquisadora, são atribuídos por eles ao hip hop. Por isso, para a professora, nessa interposição de significados reside a possibilidade de se tratar a escolarização formal e a “escola do hip hop” como campos equivalentes e complementares para a aprendizagem dos alunos.

Línguas do Brasil
REPORTAGENS
Diversidade verde-amarela
A (mu)dança das línguas
Poder e preconceito
Uma língua, múltiplos falares
ARTIGOS
Considerações sobre uma proposta de política para a diversidade
Maria Cecília Londres Fonseca
Uma política patrimonial e de registro para as línguas brasileiras
Rosângela Morello e Gilvan Müller de Oliveira
Das línguas africanas ao português brasileiro
Yeda Pessoa de Castro
Línguas indígenas: situação atual
Denny Moore
O multilingüismo e o funcionamento das línguas
Eduardo Guimarães


Jornal da Ciência nº 2843
29 de Agosto de 2005

Língua nascida do colonialismo prospera novamente na Amazônia

Em toda parte no Brasil, a língua geral como língua viva, falada, morreu há muito tempo.

Larry Rohter escreve de São Gabriel da Cachoeira, Brasil, para "The New York Times":

Quando os portugueses chegaram ao Brasil cinco séculos atrás, eles encontraram um problema fundamental: os povos indígenas que conquistaram falavam mais de 700 línguas.

Diante do desafio, os padres jesuítas que os acompanhavam elaboraram uma mistura de palavras indígenas, portuguesas e africanas que chamaram de "língua geral", e a impuseram sobre os súditos coloniais.

Em toda parte no Brasil, a língua geral como língua viva, falada, morreu há muito tempo. Mas neste canto remoto e esquecido da Amazônia, onde o Brasil, a Colômbia e a Venezuela se encontram, a língua não apenas conseguiu sobreviver como também fez um notável retorno nos último anos.

"Os lingüistas falam de línguas moribundas que vão morrer, mas esta é uma que está sendo revitalizada por sangue novo", disse José Ribamar Bessa Freire, autor de "Rio Babel: a história das línguas na Amazônia" e natural da região.

"Apesar de ter sido trazida para a Amazônia para tornar viável o processo de colonização, tribos que perderam sua língua original agora estão se refugiando na língua geral e a tornando um elemento de sua identidade", disse ele.

Há dois anos, de fato, o nheengatú, como as cerca de 30 mil pessoas que falam a língua geral a chamam, atingiu um marco. Por votação da câmera dos vereadores local, São Gabriel da Cachoeira se tornou o único município do Brasil a reconhecer outra língua que não o português como oficial, conferindo tal status à língua geral e duas línguas indígenas locais.

Como resultado, o nheengatú, que significa "língua boa", agora é uma língua autorizada a ser ensinada nas escolas locais, falada nos tribunais e usada em documentos do governo. As pessoas que sabem falar a língua geral viram seu valor subir no mercado de trabalho e agora estão sendo contratadas como intérpretes, professores e funcionários de saúde.

Em seu auge colonial, a língua geral era falada não apenas na Amazônia, mas até a bacia do Rio Paraná, a mais de 3.200 quilômetros aos sul daqui. Os padres interpretados por Jeremy Irons e Robert de Niro no filme "A Missão", por exemplo, se comunicavam com seus paroquianos indígenas em uma versão da língua.

Mas em meados do século 18, o governo português ordenou a saída dos jesuítas do Brasil, e teve início o longo declínio da língua. Ela resistiu na Amazônia após o Brasil conquistar sua independência em 1822, mas foi enfraquecida por décadas de migração de camponeses do Nordeste do Brasil para trabalhar nas plantações de juta e seringais e outros empreendimentos comerciais.

A sobrevivência do nheengatú aqui tem sido ajudada pela profusão de línguas na região, o que complica a comunicação entre as tribos; é um hábito antigo de algumas tribos exigir que membros se casem fora de seu próprio grupo de língua. Segundo cálculo de lingüistas, 23 línguas, pertencentes a seis famílias, são faladas aqui no Alto Rio Negro.

"Esta é a região mais plurilíngüe de todas as Américas", disse Gilvan Muller de Oliveira, diretor do Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Lingüística, um grupo privado e sem fins lucrativos que tem um escritório aqui. "Nem mesmo Oaxaca, no México, consegue oferecer tamanha diversidade."

Mas a persistência e evolução do nheengatú é marcada por contradições. Por um lado, nenhum dos grupos indígenas que correspondem a mais de 90% da população local pertence ao grupo tupi que forneceu à língua geral a maioria de seu vocabulário e gramática original.

"O nheengatú veio até nós como a língua do conquistador", explicou Renato da Silva Matos, um líder da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro. "Ela matou as línguas originais" porque os padres e as autoridades do governo puniam aqueles que falavam qualquer língua que não fosse o português ou o nheengatú.

Mas nos tempos modernos, a língua adquiriu um significado muito diferente. Enquanto avançava o domínio do português e aqueles que originalmente impuseram a língua buscavam sua extinção, o nheengatú se tornou "um mecanismo de resistência étnica, cultural e lingüística", disse Pérsida Miki, uma professora de educação da Universidade Federal do Amazonas.

Mesmo os jovens que falam a língua geral conseguem se lembrar dos esforços em sua infância para eliminar a língua. Até o final dos anos 80, os pais indígenas que queriam uma educação para seus filhos freqüentemente os enviavam para internatos dirigidos pelos padres e freiras salesianos, que eram particularmente duros com os alunos que mostravam sinais de se agarrar à sua língua de origem.

"Nossos pais podiam nos visitar uma vez por mês, e se não falássemos com eles em português, nós éramos punidos ficando sem almoço ou colocados de castigo em um canto", disse Edilson Kadawawari Martins, 36 anos, um líder da tribo Baniwa que passou oito anos no internato.

"Na sala de aula era a mesma coisa: se você falasse nheengatú apanhava de palmatória ou era ordenado a ficar de joelhos de frente para a classe por 15 minutos."

Celina Menezes da Cruz, uma índia Baré de 48 anos tem lembrança semelhante, mas nos últimos dois anos, ela tem lecionado nheengatú para alunos de meia dúzia de tribos na escola primária Dom Miguel Alagna daqui.

"Eu me sinto bem fazendo isto, especialmente quando penso no que tive que passar quando tinha a idade dos meus alunos", disse ela. "É importante não deixar morrer a língua de nossos pais."

Para ajudar a aliviar a escassez de professoras qualificados de língua geral, um curso de treinamento para 54 instrutores teve início no mês passado. A Unicef está fornecendo dinheiro para discutir outras formas para cumprir a lei que torna a língua oficial, e defensores esperam abrir uma Universidade Indígena aqui em breve, com cursos em nheengatú.

E apesar da língua geral ter sido criada por padres católicos romanos, as seitas evangélicas protestantes modernas foram rápidas em abraçá-la como forma de promover sua fé. Em uma missa de uma igreja da Assembléia de Deus, em uma abafada noite de domingo neste mês, povos indígenas de meia dúzia de tribos cantavam e rezavam na língua geral enquanto seu pastor, que falava apenas português, olhava com aprovação e exclamava "Aleluia!"

Mas alguns poucos aqui não ficaram satisfeitos em ver o ressurgimento da língua geral. Depois que uma emissora de rádio local começou a transmitir programas na língua, alguns oficiais da guarnição militar local, responsável pelo policiamento de centenas de quilômetros de fronteira permeável, fizeram objeção com base em uma lei brasileira que proíbe transmissões em línguas "estrangeiras".

"Os militares, com sua noção datada de segurança nacional, tendem a ver a língua geral como uma ameaça à segurança nacional", disse Muller de Oliveira.

"A língua geral pode ser uma língua em declínio, mas a idéia de que ela de alguma forma ameaça o domínio do português e conseqüentemente a unidade da nação ainda persiste e é respeitada entre alguns segmentos das forças armadas."
Tradução: George El Khouri Andolfato


fonte: The New York Times, Uol.com/Mídia Global, 28/8


Hino Nacional Brasileiro em Tupi

Nheengarissáua Retamauára
Embeyba Ypiranga sui, pitúua,
Ocendu kirimbáua sacemossú
Cuaracy picirungára, cendyua,
Retama yuakaupé, berabussú.
Cepy quá iauessáua sui ramé,
Itayiuá irumo, iraporepy,
Mumutara sáua, ne pyá upé,
I manossáua oiko iané cepy.
Iassalssú ndê,
Oh moetéua
Auê, Auê !
Brasil ker pi upé, cuaracyáua,
Caissú í saarússáua sui ouié,
Marecê, ne yuakaupé, poranga.
Ocenipuca Curussa iepé !
Turussú reikô, ara rupí, teen,
Ndê poranga, i santáua, ticikyié
Ndê cury quá mbaé-ussú omeen.
Yby moetéua,
Ndê remundú,
Reikô Brasil,
Ndê, iyaissú !
Mira quá yuy sui sy catú,
Ndê, ixaissú, Brasil!
Ienotyua catú pupé reicô,
Memê, paráteapú, quá ara upé,
Ndê recendy, potyr America sui.
I Cuaracy omucendy iané !
Inti orecó purangáua pyré
Ndê nhu soryssára omeen potyra pyré,
ìCicué pyré orecó iané caaussúî.
Iané cicué, ìndê pyá upé, saissú pyréî.
Iassalsú ndê,
Oh moetéua
Auê, Auê !
Brasil, ndê pana iacy-tatá-uára
Toicô rangáua quá caissú retê,
I quá-pana iakyra-tauá tonhee
Cuire catuama, ieorobiára kuecê.
Supí tacape repuama remé
Ne mira apgáua omaramunhã,
Iamoetê ndê, inti iacekyé.
Yby moetéua,
Ndê remundú,
Reicô Brasil,
Ndê, iyaissú !
Mira quá yuy sui sy catú,
Ndê, ixaissú,
Brasil!


Uma breve história da língua tupi, o idioma que unificou o Brasil

“Tupi or not Tupi:  that is the question”
Oswald de Andrade
Por Ozias Alves*
A palavra “Tupi” significa “o grande pai” ou “líder”. Ora, os “tupis” achavam-se os máximos tanto que chamavam a si mesmos de “tupis”. Já “Guarani” significa “guerreiro”. Os tupis, os primeiros contactados pelos portugueses quando iniciaram sua colonização no Brasil, dividiam-se em várias tribos cujos nomes registrados pela história são como elas mesmos chamavam-se ou como seus inimigos apelidaram-nas. Algumas delas.
Os Potiguares (Papa-Camarão) viviam no Rio Grande do Norte. Mais ao sul, os Caetés (gente da floresta) (aqueles que devoraram o primeiro bispo do Brasil, Dom Pero Fernandes Sardinha quando o azarado naufragou na costa do nordeste, em 16 de julho de 1556) vagavam por Alagoas. Os Tupinambás (Tupis Machos) eram os “caras” da Bahia que também davam o “ar de sua graça” em São Paulo. Já a partir da altura de Porto Seguro, sul da Bahia, e descendo para o sul, já se encontravam os Tupiniquins, inimigos mortais dos Tupinambás.
Descendo o mapa do litoral brasileiro, encontravam-se as seguintes tribos: goitacases (os corredores) (Campos, no Rio de Janeiro- estes não são tupis), tamoios (Os anciãos) (de Cabo Frio até Angra dos Reis, RJ), guaianases (Os irmãos) (São Vicente, SP), guaranis (guerreiros) (de Itanhaém até Cananéia, SP), carijós (Os brancos), que se espalhavam por Cananéia, Santa Catarina até a Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul.
Fora esses índios (hoje 99% extintos) que falavam dialetos aparentados do Tupi-Guarani, havia outras dezenas tribos da mesma família mais para o interior do Brasil, muitas da quais ainda existentes. Quando os jesuítas chegaram ao Brasil, mais precisamente em São Paulo, iniciaram seu trabalho de catequização com os índios de fala Tupi-Guarani, principalmente os tupiniquins e outras tribos amigas aos primeiros.
José de Anchieta, que viveu 44 anos no Brasil, aprendeu o tupi-guarani com os índios guaianases, de São Paulo. Essa região, que os portugueses deram o nome do famoso missionário cristão, Paulo, depois convertido em santo (São Paulo), era chamada pelos tupi-guaranis de “Piratininga”, que significa “Peixe Seco” no idioma deles. Foi na região de Piratininga que os padres jesuítas fundaram em 1554 um colégio em redor do qual indígenas das redondezas passaram a morar e muitas crianças nativas freqüentavam as aulas dos padres. Era o nascimento da cidade de São Paulo, situado em “Pindorama”, nome que os índios chamavam o país que, mais tarde, por influência dos portugueses, passou a ser denominado “Brasil”.
(…)
Quando se fala “brasileiro” há quem utilize o termo “tupiniquim” para expressar algo “brasileiro legítimo”. Existe um livro famoso chamado “Crítica da Razão Tupiniquim” (Editora Mercado Aberto- Porto Alegre (RS), 1984), de Roberto Gomes. “Tupiniquim” era o nome de uma das tribos do Brasil, falante do tupi-guarani. Aliados dos portugueses, estes índios, amigos dos guaianases, eram arqui-rivais dos tupinambás. Estes últimos uniram-se aos franceses e tamoios na guerra contra os lusitanos.
(…)
Até o final do século XVII, a língua “oficial” do Brasil era o Tupi-guarani misturado com português. De cada três brasileiros, dois só falavam Tupi-Guarani. Mas em 1759, sobre influência do Marquês de Pombal, o governo português baixou um decreto proibindo o uso do idioma “híbrido” ao qual imbutia a acusação de que estava prejudicando as comunicações na colônia brasileira e impondo punições para quem não usasse o idioma português. Foi assim que, à força, o tupi-guarani foi tirado de circulação ao longo do tempo.
(…)
O tupi-guarani influenciou profundamente o português do Brasil. Não foi apenas na incorporação de vocabulário indígena, mas até mesmo influenciou na sintaxe no idioma lusitano no Brasil. Aliás, vale lembrar que os cablocos do estado de São Paulo, em sua grande maioria, só falava tupi até a primeira metade do século XIX. “A ligação do elemento colonizador com o aborígene deu-se tão íntima e intensa que, por muito tempo, o uso do idioma guarani foi corrente no seio da população civilizada de São Paulo, notando-se, ainda hoje, sua poderosa influência no falar paulista: a circunstância dos atuais caipiras dos arredores de Conceição dos Guarulhos preferirem dormir em esteiras, no chão, desprezando o uso de cama, é uma clara reminiscência das velhas usanças dos murumimis, os quais, como é sabido, não faziam uso de redes”, salientou Afonso Freitas.
(…)
Vamos ver alguns exemplos da influência do tupi-guarani no português brasileiro. Temos a expressão “Tá”. É uma contração do verbo “Estar” na 3ª pessoa do singular? Muita gente pensa que sim, mas não é. É uma expressão do tupi incorporada na fala brasileira. Vejamos o que explica Afonso Frietas.
“O tupi-guarani não sabia modular a voz em interrogativa: suprindo tal deficiência, sempre que perguntava incluía na frase as partículas tahá, tá, pá, projeções de uma mesma raiz, e será, todas supletivas da inflexão de voz imodulável pelo órgão vocal do aborígene.
Dessas partículas- será- fixou-se no vernáculo, por modismo, mas também substituindo a expressão portuguesa- será-, razão talvez da sua rápida incorporação, total em São Paulo e noutros estados do sul, ainda incompleta nos do Norte.
Em nheengatu a partícula- será- aparece, de ordinário, encerrando a frase, posição essa ainda mantida no português falado entre a gente do povo do Norte do Brasil: – chove será, isto é, será que chove?” (página 26).
Raros são os brasileiros que pronunciam o “r” de final de palavras. Por exemplo, “pagar” é falado como “pagá”, “amor” soa a “amô” e assim vai. Pois esse vício de linguagem vem do tupi-guarani. As pessoas menos escolarizadas têm o costume de trocar o “l” pelo “i”. Não pronunciam “mulher”, mas “muié”, “pólvora” soa a “pórvora”, “filho” é “fio”, etc. Também é influência do antigo tupi, como lembra Afonso Freitas que acrescenta: “Da pecularidade do tupi-guarani empregar na frase, de preferência o particípio verbal ao infinito e de, invariavelmente, antepor as partículas pronominais aos verbos e aos nomes e pospor aos verbos os pronomes retos, é que os paulistas dizem- está chovendo, me deixe, me faça o favor, etc., enquanto os portugueses locucionam- está a chover, construção tão malsoante aos nossos ouvidos, quanto aos ouvidos lusos devem ser os- me deixe, me faça o favor, do nhengatu aclimado ao vernáculo.
A inexistência da partícula pronominal- lhe- no nheengatu, decorrente da ausência da consoante- l-, no alfabeto daquele idioma, deu azo à formação do modismo tão desagradável- disse pr’á ele (que muitos refinam desastradamente em disse p’r'ele), dá nele, etc., por disse-lhe, dá-lhe, etc” (página 25).
Há tantas palavras tupi incorporadas ao português que nem percebemos, inclusive até na gíria de jovens. Por exemplo, há jovens que dizem: “O fulano chegou no serviço e BABAU. Perdeu o emprego”. O “Babau”, que muitos acham ser uma gíria de surfista, é uma expressão secular do tupi-guarani, que significa “acabou-se”.
Outra expressão tupi é “nhenhenhén”. “Aquele cidadão é muito cheio de nhenhenhén”, ou seja, que fala e reclama incensantemente. A fala vem de “nheen nheen”, que significa em tupi “fala fala”. Vejamos a seguinte frase: “Este cara é meu xará”. Esta palavra, também tida como gíria, significa “amigo” no antigo idioma indígena.
Os gaúchos usam e abusam do seu típico “tchê” no final de suas frases.
“Tchê” é outro sinônimo tupi-guarani que significa “amigo”. Também significa “eu” e “meu”. Mas esta palavra tão usada pelos gaúchos incorporou-se tanto no português do Rio Grande do Sul como no espanhol dos argentinos e uruguaios dos pampas fronteiriços ao Brasil por influência também do guarani do Paraguai. Aliás, o famoso guerrilheiro argentino que participou da revolução cubana, Ernesto Guevara, que morreu na Bolívia em 1967, era chamado de “Che” (como é escrito “Tchê” no espanhol). Portanto, Che Guevara significa “Amigo Guevara”, que a história imortalizou como símbolo da rebeldia e da luta revolucionária esquerdista.
Aliás, “gaúcho” era o nome dado aos índios guaranis que viviam nas missões.
Com a dispersão desses nativos pelos bandeirantes paulistas, os índios que escaparam da escravidão passaram a viver da pecuária. Nas missões, criava-se gado. Quando foram destruídas, parte da manada escapou e se multiplicou nos campos dos pampas, que cobrem a maior parte do Rio Grande do Sul. Outrora, os pampas eram imensidões de pasto nativo onde ninguém morava. Com o tempo, principalmente no século XVIII, a ocupação dos pampas intensificou-se principalmente com a formação de fazendas. O gado criado ao ar livre passou a ser aprisionado e cuidado por peões.
Em Minas Gerais, Foram descobertos ouro e pedras preciosas. Milhares de pessoas, principalmente do Rio de Janeiro, São Paulo e nordeste brasileiro foram para Minas Gerais em busca do enriquecimento. Como não plantavam já que passavam o dia inteiro escavando (ou fiscalizando as minas- daí o lugar ficar conhecido por “Minas Gerais”), esse contigente de mineiradores tinham que importar a comida que necessitava. Surgiu o mercado que os fazendeiros do Rio Grande do Sul passaram a atuar. A carne seca (charque) do RS era vendida em Minas Gerais. Daí a influência no desenvolvimento econômico dos pampas. E quem eram os peões que trabalhavam nas fazendas do RS? Eram descendentes dos índios guaranis, que tanta experiência tiveram na criação de gado quando trabalhavam nas missões. Os índios eram chamados pejorativamente de “gaúchos”. Não é a toa que os atuais “gaúchos” (agora nome de orgulho) gostam de se chamar de “Índios Velhos”.
A influência do tupi está no vocabulário da fauna. Nome de animais e plantas como jaguar, jacaré, macaco, sagui (pêlo), tapera (casa abandonada), cangueiro (de “Acanga”-cabeça, instrumento de tração para os bois), ipê, piracema, etc, etc, etc. Ao todo, como lembra Raquel F. A. Teixeira, em artigo no livro “A Temática Indígena na escola (MEC, Mari/ Unesco, Brasília, 1995), 70% do vocabulário do português brasileiro sobre animais plantas provém do tupi-guarani que tem vasta influência no nome de cidades e acidentes geográficos no país. Vejamos alguns exemplos.
O nome do estado de “Maranhão” vem de “Mar’Anhan”, que significa “O mar que corre”. Já “Paraná” significa “rio” no idioma indígena. “Pará” é “oceano”, “Niterói” “Baía do mar morto” e assim vai. O Brasil está repleto de cidades com nomes indígenas, todos, sem exceção, provenientes do tupi-guarani.
A contribuição do tupi-guarani deu-se também na incorporação de ditados populares no folclore brasileiro. Um deles, muito conhecido, é “Cada macaco no seu galho”. Esse ditado vem da expressão “Macaca tuiué inti hu mundéo i pú cuimbisca o pé” ( Macaco velho não mete mão em cumbuca).
Quando os tupi-guaranis citavam a expressão contavam a seguinte história.
Era uma vez um macaquinho guloso soube que havias frutas numa certa cumbuca feita de uma árvore chamada sapucaia. Introduziu a mão no recipiente. Ao tentar tirá-la, a mão ficou presa. Assustado, o bichinho disparou-se aos pulos pela floresta arrastando a sapucaia e gritando desesperadamente: Ai! Ai! Ai! Cuimbisca hu pscá se pú! Ai! Ai! Ai! Cuimbusca hu pscá se pú! (Ai! Ai! Ai! Cumbuca pegou minha mão).
Os macacos assustaram-se e foram ajudar o macaquinho em apuros. Seguraram o filhote e chamaram o macaco mais velho para aconselhar como retirar a mão do macaquinho da cumbuca. O velho examinou a cumbuca, pegou uma pedra e, em repetidos golpes, quebrou a cumbuca, libertando a mão do macaquinho travesso.
Recuperado do susto, o filhote perguntou ao macaco velho: “Macaca tamuia taá inti ana cuimbisca hu pscá ana i pú? (Vovô, cumbuca já pegou sua mão?) Respondeu o macacão: Macaca tuiué inti hu mundéo i pú cuimbisca o pé (Macaco velho não mete mão em cumbuca).
A idéia de ensinar Tupi-guarani como língua optativa nas escolas, como se cogitou para o Rio de Janeiro, é boa idéia pois trata-se de um resgate da cultura brasileira. Registro aqui uma sugestão aos intelectuais envolvidos nesse projeto: por que não elaboram um curso por correspondência do idioma índio e editam uma revista com textos em Tupi-guarani com traduções em português? Trata-se de um excelente incentivo que certamente contará com grande receptividade. [Artigo resumido e adaptado]
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Leia o artigo na íntegra


Sotaque vem do nheengatu, a língua brasileira

Estadão – Valdir Sanches, Lagoinha (SP)
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Caipira é aquele que fala o dialeto caipira. É o idioma brasileiro, mas com palavras tupi e sotaque da língua brasileira. A língua brasileira é o nheengatu, que existiu no Brasil até ser proibida por Portugal, no século 18. Seu nome parece coisa de índio, e é. O nheengatu incorpora a fala dos índios tupi, que ocupavam o litoral brasileiro. Na verdade, até hoje, quem se refere ao Ibirapuera, fica jururu, come abacaxi ou se pendura num cipó está se expressando nessa língua. Há algum tempo, quando o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso usou a expressão “chega de nhémnhémnhém”, estava falando puro nheengatu. No Brasil Colônia, era falada fluentemente em uma grande área do País, que ia de Santa Catarina ao Pará. A elite também se expressava por meio dela, embora não em todos os setores. Durante os processos, o juiz dispunha de um intérprete.
“Tivemos uma língua brasileira até o século 18″, diz o professor José de Souza Martins, do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP. “Só os portugueses, que eram estrangeiros, falavam português.”
A língua foi criada no século 16 pelos jesuítas, destacando-se o Padre Anchieta. O fundador de São Paulo era lingüista. Para se entender com os nativos, classificou o tupi e criou uma gramática da língua geral. Ou seja, o nheengatu. “Uma língua de travessia, não é português, nem índio, eram ambas”, diz Martins. O português, nesse caso, era o que hoje chamamos arcaico. Convidava-se uma dona para uma função, em vez de uma senhora para um baile. E dizia-se coisas como agardece (agradece), alevantá e inorância.
Os índios tinham dificuldade em falar palavras portuguesas como os verbos no infinitivo. E também palavras com consoantes dobradas (rr) ou terminadas em consoante. Além disso, colocavam vogal entre consoantes. Mulher, colher e orelha viraram muié, cuié e oreia. De sua dificuldade com o “erre”, vem o “pooorta”, reflexivo, com a língua tocando o céu da boca. Martins esclarece que “o dialeto caipira não é um erro, é uma língua dialetal”. Mais do que isso: “É uma invenção lingüística musical e social.”
Os brasileiros viviam muito bem com ela, até que, no reinado de d. José I (1750 a 1771), Portugal a proibiu. O veto veio em um decreto do primeiro-ministro, o Marquês de Pombal. Bania o ensino do nheengatu das escolas. A decisão foi acatada nas salas de aula, mas o povo continuou falando no dialeto caipira. O tempo acabou por impor o português, mas o dialeto puro resiste.
Ainda é falado em alguns pontos da fronteira com o Paraguai. E, em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, a 860 quilômetros de Manaus, uma lei de 2002 tornou o nheengatu língua co-oficial do município. Na contramão do decreto do marquês, determina que seja incentivado seu ensino nas escolas, e o uso nos meios de comunicação (o tucano e o baniva também se tornaram línguas co-oficiais).
E ficou o “caipirês” da roça. Por essas bandas, ensina Martins, a língua se multiplica. “Quando o novo aparece, o caipira inventa, a partir da matriz da palavra, algo que tem sentido para ele.” Há certo tempo, Martins e um grupo de estudantes apresentaram questões a algumas pessoas. Perguntaram a um homem: “Você concorda ou não concorda?” O homem não entendeu. A pergunta foi sendo repetida, sem sucesso, até que um dos estudantes mudou a forma: “Você concorda ou disconcorda?” Deu certo.
Texto adaptado. http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080421/not_imp160205,0.php

A proibição da língua brasileira

O nheengatu, também conhecido como”língua geral”, a língua que se quer proibir, é a verdadeira língua nacional brasileira. O nheengatu foi desenvolvido pelos jesuítas nos séculos 16 e17, com base no vocabulário e na pronuncia tupi, que era a língua das tribos da costa, tendo como referencia a gramática da língua portuguesa, enriquecida com palavras portuguesas e espanholas. A língua geral foi usada correntemente pelos brasileiros de origem ibérica, como língua de conversação cotidiana, até o século 18, quando foi proibida pelo rei de Portugal. Mesmo assim continuou sendo falada.
Da língua geral ficou como remanescente o dialeto caipira, tema de dicionário e objeto de estudos lingüísticos até recentes. Sobraram pronuncias da língua tupi, reduções e adaptações da língua portuguesa. Um jesuíta, no século 16, já observara que os índios da costa tinham grande dificuldade para pronunciar letras como o “L” e o “R”. Especialmente na finalização de palavras como “quintal” e “animal”; ou verbos como “falar”, “dizer” e “fugir”. Essas letras foram simplesmente suprimidas e as palavras transformadas em “quintá”, “animá”, “falá”, “dizê”, “fugi”.
Somos um povo bilíngüe, e o reconhecimento desse bilingüismo seria fundamental no trabalho dos educadores.
Dificuldades também havia para pronunciar as consoantes dobradas. Daí que, no dialeto caipira, “orelha” tenha se tornado “orêia” (uma consoante em vez de três; quatro vogais em vez de três), “coalho” seja “coaio”, “colher” tenha virado ”cuié”, “os olhos” sejam “o zóio”… E no Nordeste ainda se ouve a suave “fulô” no lugar da menos suave “flor”. Uma abundância de vogais em detrimento das consoantes, até mesmo com a introdução de vogais onde não existiam. Exatamente o contrario da evolução da sonoridade da língua e Portugal, em que predominam os ásperos sons das consoantes. No Brasil, a língua portuguesa ficou mais doce e mais lenta, mais descansada, justamente pela enorme influência das sonoridades da língua geral, o nheengatu.
Nossa língua cotidiana está algo distanciada da língua portuguesa, que é a oficial e, num certo sentido, é uma língua importada. Não raro viajamos entre toponímicos tupi. Na Cidade de São Paulo transito regularmente entre o Butantã e Carapicuíba e o Embu, aonde levo meus alunos, periodicamente, para uma aula de rua. Ou os levo ao Museu Paulista, no Ipiranga, para outra aula, ou à Moóca, para observações etnográficas sobre uma festa italiana. Faço tudo isso dentro da língua tupi. Como posso ir do rio Guaíba à Paraíba ou ao Pará ou ao Piauí sem achar que estou falando uma língua estrangeira, que ela não é.
Em escolas rurais de povoados do Moto Grosso, do Pará e o Maranhão, observei um fato curioso. Uma vez que as crianças escrevem como falam, não e raro que acrescentem de preferência um “r” às palavras oxítonas, a letra usada como acento agudo: “ater”, em vez de “até”; “Joser”, em vez de “José”. Algo que tem sua curiosa legitimidade no modo como se escrevia oficialmente o português até ,meados do século 19, letras fazendo as vezes de acentos e sinais. A própria língua falada, no confronto com a escrita, oferece às crianças inteligentes a chave de adaptação de uma à outra: se elas dizem “falá” e vêm que a palavra escrita é “falar”, logo entendem que o “r” é aí acento, e não letra para ser pronunciada.
É comovente a reação dos jovens quando descobrem que são falantes do que resta de uma língua que já foi a língua do povo brasileiro e que conhecem um grande número de sons e palavras tupi. O que lhes dizem ser erro e ignorância é, na verdade, história social, valorosa sobrevivência da nossa verdadeira língua brasileira. Se não fosse assim, seria impossível rir daquela história de dois mineiros que resolveram temperar a prosa com café. E foram para a cozinha. Água fervida, coador pronto, um pergunta para o outro: “Pó pô o pó?”. E o outro responde, firme:”Pó pô!”.
De fato, somos um povo bilíngüe, e o reconhecimento desse bilingüismo seria fundamental no trabalho dos educadores, em particular para enriquecer a compreensão da língua portuguesa, última flor do Lácio, inculta e bela, mais bela ainda porque invadida por esse outro lado da nossa identidade social, que teimamos em desconhecer.

José de Souza Martins, 64, é professor titular do Departamento de Sociologia da USP.

Leia aqui o artigo original:
http://www.terrabrasileira.net/folclore/manifesto/nheenga2.html

OTI – O EXTERMÍNIO DE UM POVO (A origem do R caipira)

Oeste do Estado de São Paulo, no chamado sertão de Botucatu, onde em meados do século vivia um grupo coletor – os Oti, Não sabemos ao certo se o território original era mais na margem direita do Paraná, como um outro grupo coletor, os Ofaiè.
Por viverem nos campos, tanto os Oti, como os Ofaiê, foram chamados de Xavante, o que muitas vezes confunde quem não conhece muito a questão indígena. São poucos os relatos sobre os Oti, pois no início deste século já estavam praticamente extintos. Dois textos, pouco citados, merecem destaque: o de Curt Nimuendaju, que conta a história dos últimos remansescentes e um outro de Telêmaco Borba, indigenista que recolheu várias palavras Oti, por volta de 1878. (1908, BORBA, T. Actualidade Indígena. Curitiba: Impressora Paranaense).
O que chamou a atenção de Borba é que aquele povo, como alguns povos jê, possuía sons que os grupos de língua tupi não tinham, como o /r/ forte, Borba afirma que “é muito gutural”, e é o que se chama de /r/ retroflexo. Esta observação é de suma importância, pois vem mostrar uma das origens do famoso /r/ paulista, classificado também como /r/ caipira. Este mesmo som encontramos na língua kaingang e provavelmente deve haver o mesmo em outras línguas de grupos da família jê, mostrando uma influência de línguas do tronco macro-jê na fonética brasileira atual.
Os Oti, como vários grupos coletores, embora andarilhos, possuíam um território bastante delimitado – os Campos Novos – , no Oeste do Estado de São Paulo. Ao Norte, eram barrados pelas matas da bacia do Rio do Peixe, onde viviam seus inimigos tradicionais, os Kaingang, e ao Sul, pelo Rio Paranapanema, habitat dos Guarani Kaiowá. Como moradores dos campos, não usavam a canoa e pouca intimidade tinham com o rio.
Assemelhavam-se na simplicidade de vida aos Nambikwara, do Oeste de Mato Grosso. Não conheciam a cerâmica. Suas casas eram como os abrigos, feitas com ramos enterrados no chão e cobertas de folhas de palmeira, tão pequenas, que mal dava para se ficar sentado dentro delas. Construíam-nas alinhadas à beira de algum riacho, para facilitar a obtenção d’água.
Caçavam nos campos onde viviam, mas quando os animais se tornavam mais escassos, procuravam a mata, moradia de seus inimigos Kaingang. Como valentes guerreiros, os enfrentavam e geralmente levavam a melhor. Para a caça e a guerra, possuíam o arco, a flecha e uma comprida lança, feita com o tronco da palmeira.
Os aldeamentos eram pequenos, formados no máximo por 40 pessoas e a população total não devia passar de 500 pessoas.
A situação desse povo modificou-se drasticamente quando, por volta de 1830, os mineiros começaram a invadir a região. Com eles veio o gado. Para os Oti, aqueles estrangeiros pareciam trazer-lhes dádiva do céu, pois não precisavam se arriscar nas matas dos Kaingang, encontrando farto alimento nos tranqüilos animais que pastavam nos campos. Conta-se que, em 1870, chegou na região uma tropa de 80 éguas, que em pouco tornaram-se alimento daqueles indígenas.
Eles nem suspeitavam o mel que estavam provocando, passando a ser alvo da ira dos colonos. De caçadores passaram a ser caçados.Nimuendaju nos dá um impressionante relato de uma dessas “caçadas”, feita por um grupo de 57 homens, reunidos pelo proprietário dos animais desaparecidos, João da Silva, numa aldeia situada no córrego da Lagoa, afluente do rio Sapé: “Os Oti dormiam o sono dos incautos e além disso a cerração encobria o inimigo que se aproximava: uma parte deste pois, a pé, passando através de uma pequena faixa de mata que se estendia pelos fundos da aldeia, cortou-lhes a fugida, enquanto a outra parte, a cavalo, deu a investida pela frente pelo campo aberto e em poucas horas se via uma carnificina, igual a tantas outras que pode enumerar a história de nosso sertão.
Atordoados e sonolentos, os Oti levantaram-se, tentando escapar, tendo alguns deles mesmos tanta pressa nisto, que saíam com a choça à cabeça, arrancando-a do solo com o levantar; porém debalde; eles estavam circulando e foram mortos todos sem exceção de idade ou sexo, até verificarem apenas duas ou três crianças que foram lavadas como troféus vivos. Quantos Oti foram assassinados nesta ocasião no córrego da Lagoa não se pode assegurar hoje. José Paiva, um dos que fizeram parte do grupo dos assaltantes, disse-me que os mortos estavam em montes sobre o terreno, e outras pessoas me garantiram que o número deles alcançava a 200; no entanto parece exagerar.
Depois deste ataque, os Oti se mudaram da região, indo para a mata, em lugares mais escondidos e com sentinelas permanentes.Mesmo assim, continuavam caçando bois e sobretudo cavalos, sua caça preferida. Por volta de 1890, o grupo estava reduzido a 50 pessoas. O extermínio dos Oti fez com que os kaingang do Rio do Peixe se tornassem mais ousados, atacando os colonos. A situação tornou-se tão tensa, que os moradores de Jaguaretê, tiveram que abandonar tudo, mudando-se de região.Os massacres continuavam cada vez mais violentos. Quando localizados em algum samambaial seco, o fogo era ateado, queimando-os vivos.
“Em 1853, alguém condoeu-se e resolveu fazer alguma coisa. Tratava-se de Veríssimo de Góes, um condutor de carro-de-boi de um morador de São Mateus. Imaginou que levando-os até a capital do Estado, iria encontrar ajuda e talvez uma área onde pudesse instala-los. Com muita conversa, convenceu o grupo do cacique Achimaco a realizar a viagem. Desconfiados daquele estranho convite, alguns se recusaram a partir. Com 30 pessoas, Góes iniciou a viagem até São Paulo.
É de se imaginar o impacto que causou um grupo indígena, viajando de trem até a capital Ali chegando nem ajuda material e nem apoio conseguiram. Receberam alguns presentes e foram aconselhados a retornar à região. Sem recurso para a viagem de volta, Veríssimo não hesitou em vender alguns indígenas e por sua vez as mulheres foram vergonhosamente prostituídas para receber algum dinheiro. Dos 30, apenas um pequeno grupo conseguiu voltar à região de origem.
Para completar essa tragédia, uma doença contraída na viagem matou o líder Achimaco e quase todo o grupo, ficando apenas um único sobrevivente. Por sua vez os que se recusaram a ir para São Paulo, foram mortos pelos Kaingang”.
Segundo Nimuendajú, em 1903, restavam apenas nove pessoas: um homem, quatro mulheres e quatro crianças. Nesse mesmo ano, o homem foi assassinado por um tal Manoel Caetano. Narra esse pesquisador, que as mulheres então desamparadas tentaram procurar ajuda entre os colonos. Certo dia, um grupo de trabalhadores encontrou-se com elas, que agarrando-lhes pelas mãos, insinuavam unir-se a eles. Assustados, com aquela aparição repentina, um deles gritou-lhes que eram Coroados (Kaingang).
“Mal se declinara o nome desta tão temida tribo, conta Nimuendaju, perderam os trabalhadores a cabeça e possuídos de verdadeiro pânico, cada qual procurava sua arma, nem mais se lembrando da orelha furada dessas mulheres, que era o sinal da tribo Oti. Debalde clamava o velho Israel (que conhecia bem aquele povo), que não atirassem nelas, debalde: à distância de um braço estendido, um de seus parentes varou com uma bala a cabeça da índia que lhe estava mais próxima; esta caiu-lhe aos pés, fugindo as outras três ao mato e os trabalhadores para as suas casas. No dia seguinte, encontrou-se o cadáver da mulher ainda no mesmo lugar, estando ainda viva a criança que conduzia, a qual só veio a falecer muito tempo depois”.
Em 1910, foram localizados mais três indígenas: um homem e duas mulheres, adotados por famílias brasileiras. Nimuendaju ainda conheceu esse homem, José Chavantes, já muito doente de malária, que logo o levaria.
A história desse povo faz lembrar a frase de Tupxi, indígena Irantxe, na década de 60: “Se a gente amansa índio ele morre de gripe; se não amansa índio, ele morre de tiro”.
PALAVRAS OTI:
Tuasla, estrela
Teuéde, moço
Dielsede, rio, água
Quyade, lua
Athrabe, pai
Itarduêde, menino
Fiduá, mãe
Diguede, mato
Hipipá, mulher
Inhestecude, arco
Igobe, casa
Uictoma, moça
Torta, flecha
Chanin, chuva
Leia aqui o artigo original:
http://terre.indigene.free.fr/etnias/OTI.htm


Guia traduz os nomes tupis de São Paulo

Lançado nesta semana, livro de guia de turismo compila os significados de nomes de bairros e ruas da capital, derivados do idioma nativo

por Moacir Assunção


ESTADÃO Vera Lúcia Dias, de 56 anos, especializada em turismo cultural em São Paulo, conhece bem a cidade. Mas eis que, há cinco anos, uma turista portuguesa lançava uma pergunta, que viraria desafio: “O que significa Maracanã?” Ela não sabia. Como também não sabia a origem de outras palavras que despertavam a curiosidade dos turistas. Eles queriam saber o que significava pacaembu (rio das pacas), tucuruvi (gafanhoto verde), anhangabaú (bebedouro do demônio), jaçanã (galinha d?água), tatuapé (caminho do tatu), anhangüera (diabo velho), itaquera (pedra a dormir), guaianazes (parente), ipiranga (riacho vermelho), jabaquara (esconderijo de negros fugidos), morumbi (mosca verde) e ibirapuera (madeira podre).
Para não silenciar novamente, ela pesquisou. Do estudo, surgiu o livro O Tupi em São Paulo, Vocabulário de Nomes Tupis nos Bairros Paulistanos (Editora Plêiades), lançado nesta semana.
Descendente de clássicos como Vocabulário Tupi-Guarani Português, de Silveira Bueno, e Gramática da Língua Tupi, de Teodoro Sampaio, a obra, de apenas 50 páginas, tem como objetivo introduzir turistas e paulistanos na língua dos nativos. Até meados do século 18, só se falava em tupi ou em sua variação, a língua geral nheengatu, na cidade, então pobre povoação perdida no planalto de Piratininga (peixe seco). A autora, que nasceu na Mooca (fazer casa, em tupi), também freqüentou o curso de tupi antigo oferecido pelo professor Eduardo de Almeida Navarro, da Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo (USP).
Descobriu que os nomes de boa parte dos 2 mil microbairros paulistanos têm origem em dois troncos: no tupi, casos de alguns dos mais antigos, e no português, ligado à religião, como Santo Amaro, Penha, Freguesia do Ó e Santana. Com relação às ruas, há enorme quantidade delas com nomes indígenas. “As pessoas, de maneira geral, não sabem o que significa o nome de seus bairros. Tenho percebido, para meu espanto, jovens que nem sabem onde nasceram”, diz ela. Nesse desconhecimento pode estar a chave, para a guia, de um certo desamor do paulistano pela cidade.
Até ela se surpreendeu: pensava que palavras como Sacomã e Nhocuné eram de origem indígena. São o sobrenome de uma família francesa, os Saccoman, que povoaram o bairro da zona sul, e uma contração da expressão “sinhô coroné”, usada pelos escravos para se referir ao coronel Christalino Luiz da Silva, dono das terras que geraram a área, na zona leste.
“O que mais me dá prazer é quando alguém, depois de conhecer o significado do nome do seu bairro, se interessa em pesquisar mais sobre a cidade”, comenta Vera, de pouco mais de 1,50 metro e cabelos curtos, que há dez anos leva turistas a lugares inusitados, como o Cemitério da Consolação. “Quando viajam para o exterior, os turistas brasileiros visitam o cemitério da Recoleta, em Buenos Aires, e o Père-Lachaise, de Paris. Por que não passear pelas alamedas de um lugar que conta a história de São Paulo, como o Consolação?”
Vera faz questão de dedicar seu trabalho aos índios guaranis, língua do tronco tupi, das três aldeias que sobrevivem na cidade – duas em Parelheiros, a Crucutu e a Morro da Saudade, e a terceira no Pico do Jaraguá. Sua tristeza é constatar que São Paulo, que deve sua toponímia e geografia, além da língua e de vários hábitos, aos índios, não reservou nenhum espaço para eles no centro. “Os turistas se espantam quando a gente fala que ainda há índios em São Paulo, mas vê-los sentados na Praça da Sé, vendendo artesanato, me dói no coração.”
Para entrar no clima, ela saúda os turistas com a tradicional “dereco-porã?” (tudo bem?, em guarani). A propósito, Maracanã é um tipo de arara, um papagaio amarelo antigamente comum nas matas brasileiras, assim como a variedade canindé, que dá nome a um bairro e a um estádio paulistanos.

VOCABULÁRIO TUPI
Butantã – terra dura
Cangaíba – dor de cabeça
Carandiru – cesto de flores
Congonhas – erva mate
Cupecê – língua partida
Grajaú – macaco preto
Guarapiranga – garça vermelha
Imirim – rio pequeno
Iguatemi – verde escuro
Itaim – pedra pequena
Jaguaré – lugar onde havia onças
Jaraguá – o senhor do vale
Mauá – coisa elevada
Moema – doce
Tamanduateí – rio de muitas voltas
Tamoio – bisavô
Tutóia – Oh, lindo

O tupi que o Brasil fala hoje

Assim, mesmo sem saber, não existe brasileiro que não conheça alguma palavra desse idioma. Que não saboreie abacaxi, pitanga, caju, jaboticaba, sapoti, gravatá ou pequi, frutas que conservaram seus nomes nativos. Ou que jamais tenha ouvido cantigas folclóricas como “Eu fui no itororó beber água e não achei. Achei bela morena, que no itororó deixei” —, mesmo desconhecendo que itororó é uma palavra indígena que significa bica d’água. Leia a seguir mais alguns exemplos, extraídos do Método Moderno de Tupi Antigo, livro do professor Eduardo Navarro:
“Reparando bem, todo mundo tem pereba, só a bailarina que não tem”, diz uma música de Chico Buarque de Holanda. Pereba, do tupi, significa ferida.
- Pare com este nhen-nhen-nhen. A expressão vem do verbo nhe’eng (falar, piar) e significa pare de ficar falando, de falar sem parar.
-O velho jogo de peteca, que é um pequeno saco cheio de areia ou serragem sobre o qual se prendem penas de aves, tem este nome devido ao verbo petek — golpear ou bater com a mão espalmada. É com a palma da mão que se joga o brinquedo.
- Velha coroca é uma velha resmungona. O termo nasceu do verbo kuruk, que significa resmungar.
- O verbo cutucar, em português, origina-se do tupi kutuk, cujo significado original — furar, espetar — modificou-se ligeiramente. Em português, cutucar é tocar com a mão ou com o pé.
- Estar jururu é estar melancólico, tristonho, cabisbaixo. O termo indígena aruru, de onde surgiu a palavra, tem o mesmo sentido.
- Várias palavras mantiveram pronúncia e significado praticamente originais: mingau (papa preparada geralmente com farinha de mandioca), capim, mirim (que significa pequeno) e socar (do verbo sok, com o mesmo significado).
- A expressão estar na pindaíba muito brasileiro conhece: significa estar em graves dificuldades financeiras.É uma expressão que vem das palavras pinda’yba — vara de pescar (pindá, isoladamente, significa anzol). Antigamente, quando a pobreza abatia as populações ribeirinhas, era comum se tentar tirar a subsistência do rio, pescando para comer ou para vender o pescado. Segundo os pesquisadores, a expressão nasceu no período colonial brasileiro, em que o tupi em sua forma evoluída conhecida como “língua geral” era falado pela maioria dos brasileiros.
- A perereca recebe esse nome simplesmente porque ela pula. Vem do verbo pererek, pular, que é também a origem do Saci-Pererê que, por não ter uma perna, anda aos pulos.


Língua do Brasil

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Especialista contesta que nossa língua é a portuguesa.
Sabe aquela história de que falamos português? Pois bem, segundo o lingüista Nicolau Leite, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e mais conhecido pelo seu pseudônimo literário, Nic Tupan’an, aquilo não passa de nhenhenhém. Como nossa língua pode ser portuguesa se ela é formada por 30 000 vocábulos indígenas e mais de 3 000 palavras trazidas pelos escravos africanos do tronco banto (veja quadro abaixo)?, diz. Nhenhenhém, por exemplo, é uma palavra do nheengatu-tupi, a língua falada no Brasil até o século XVIII, quando Portugal proibiu sua utilização. Nheem designa o ato de falar, nhenhenhém é falatório inútil, sem sentido. Tupan’an, que quer dizer alma de trovão, acha que nosso idioma é mesmo o brasileiro e que é absurdo tentar unificar as línguas com normatizações. O português, no fundo, foi só a casa de fundação da nossa língua, que recebeu e continua recebendo influências de todos os lados, afirma.

Palavras do nheengatu-tupi, a língua geral que se falava no Brasil

Catingar:
Exalar mau cheiro. Caá é mato e ting, virgem. Caatinga é mata virgem. O verbo catingar surgiu porque as pessoas, quando entram nessas matas típicas do sertão nordestino (que já são malcheirosas), voltam suadas, cheirando mal. Não há nesses locais rios para tomar banho.
Capinar:
Devastar, cortar o mato. Vem da soma das palavras caá (mato) e pin (cortar). A palavra capim também tem sua origem aí e significava erva-daninha, ou mato que tem que ser cortado.
Niterói:
O nome dessa cidade tem sua origem da união entre inti (sem) e roi (frio) e significa lugar quente.
Catapora:
Tatá é fogo, pora é interno. Catapora, portanto, quer dizer fogo interno. Ou febre intensa, um dos sintomas da doença.

Palavras do banto, tronco lingüístico do sul da África

Baia:
Origina-se da palavra dibaia, que quer dizer tábua de madeira. Passou a designar aqueles cubículos de madeira onde ficam os cavalos e acabou denominando também os locais de trabalho cercados por barreiras baixas.
Jabaculê:
Vem da palavra bakula, que designava o pagamento, normalmente em alimentos, para as divindades. Daí os dois sentidos atuais: pagar propina e carne seca.
Babau:
Em português quer dizer acabou, terminou. Com a mesma grafia em kinbundu, uma língua banto, significava foi embora.
Bagunça:
Vem de bangunza, que significa revolta, insurreição.


A importância do Tupi

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O tupi foi a língua mais falada do Brasil até o século 18 e foi a  língua oficial do Brasil junto com o português até o século 18. E só deixou de ser falado porque o Marquês de Pombal, em 1759, proibiu o ensino do tupi. O tupi antigo era conhecido até o século 16 como língua brasílica. No século 17, ele passou a ser chamado de língua geral, pois incorporou termos do português e das línguas africanas. Mas continuava sendo uma língua indígena, assim como é até hoje o guarani no Paraguai, falado por 95% da população. Nas relações formais, é o castelhano que se fala, mas em casa é só o guarani. A dissolução do tupi foi rápida porque a perseguição foi muito violenta. Mesmo assim, até o século 19 ainda havia muitos falantes do tupi. Hoje, a língua geral só é falada no Amazonas, no alto Rio Negro – chama-se nheengatu e tem milhares de falantes entre os caboclos, índios e as populações ribeirinhas.
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O tupi é importante para se entender a cultura brasileira. O brasileiro já nasce falando tupi, mesmo sem saber. O português falado em Portugal diferencia-se do nosso principalmente por causa das expressões em tupi que incorporamos. Essa incorporação é tão profunda que nem nos damos conta dela. Mas é isso o que faz a nossa identidade nacional. (…) Além disso, a literatura brasileira não é só em português, é em tupi também. Um exemplo são as obras do padre Anchieta, que escreveu teatro, poesia lírica, músicas, catequese, tudo em tupi. Gonçalves Dias quis recuperar isso com suas obras, como I Juca Pirama – que significa “o que vai ser morto” –, assim como José de Alencar que, ao escrever Ubirajara, Iracema e tantos outros livros, buscava encontrar o rosto do Brasil. A importância do tupi se faz notar em cada fala nossa.
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