Foi assim. No primeiro século da era cristã, os Guarani saíram da região amazônica, onde viviam, e caminharam em direção ao Cone Sul. Depois de longas andanças, ocuparam terras que hoje estão dentro de vários estados nacionais: Brasil, Paraguai, Argentina, Uruguai e Bolívia. Os vestígios arqueológicos e linguísticos que foram deixando ao longo do caminho permitiram que os pesquisadores reconstruíssem essa rota e estabelecessem datas prováveis do percurso feito.
Dois mil anos depois, um italiano, nascido em 1948, em Toscana, atravessou o oceano Atlântico com sua família, veio para Porto Alegre, de lá para Curitiba, se naturalizou brasileiro e se instalou, finalmente, em Mato Grosso do Sul, onde encontrou os Guarani, que lá vivem há quase dois milênios. O italiano recém-chegado se tornou governador do Estado. Seu nome: André Puccinelli (PMDB – vixe, vixe).
A migração estrangeira ajudou a construir nosso país, quando conviveu em paz com os que aqui estavam há muitos séculos, sem atropelá-los. Muitos estrangeiros, honrados, trouxeram trabalho, riqueza e cultura e compartilharam o que tinham e o que produziam com o resto da sociedade que os acolheu. Ensinaram a aprenderam. Mudaram e foram mudados. Benditos estrangeiros que plasmaram a alma brasileira!
No entanto, não foi isso o que sempre aconteceu em Mato Grosso do Sul. Lá, desde 1915, fazendeiros, pecuaristas e agronegociantes, quando chegaram, encontraram as terras ocupadas por índios. Consideraram as terras indígenas como “devolutas” e começaram a expulsar os que ali viviam, num processo que se acelerou nas últimas décadas. Foi aí que os invasores, representados hoje, no campo político, por André Puccinelli, colocaram seus documentos pra fora e, machistas, ordenaram autoritariamente:
— Deite que eu vou lhe usar!
Usaram a terra em proveito próprio, da mesma forma que o coronel Jesuíno, interpretado por José Wilker, usou a Sinhazinha na minissérieGabriela: sem nenhum agrado, sem qualquer respeito. Com dose cavalar de brutalidade, desmataram, queimaram, exploraram os recursos naturais, abusaram dos agrotóxicos, colheram safras bilionárias de soja, cana e celulose, extraíram minério, poluíram rios e privatizaram a natureza para fins turísticos. Pensaram só neles, no lucro, e não na terra e na qualidade da vida, nem compartilharam com a sociedade, que ficou mais empobrecida.
Flor da terra
O resultado desastroso do uso da terra foi lamentado pelos líderes e professores Kaiowá em carta de 17 de março de 2007:
O fogo da morte passou no corpo da terra, secando suas veias. O ardume do fogo torra sua pele. A mata chora e depois morre. O veneno intoxica. O lixo sufoca. A pisada do boi magoa o solo. O trator revira a terra. Fora de nossas terras, ouvimos seu choro e sua morte sem termos como socorrer a Vida.
Para os Guarani, o que aconteceu foi um estupro, ferindo de morte a sinhazinha natureza. A relação deles com a terra é amorosa, eles não se consideram donos da terra, mas parceiros dela. Ela é o tekoha, o lugar onde cultivam o modo de ser guarani, o nhanderekó. “Guardamos com a terra” – diz o kaiowá Tonico Benites – “um forte sentimento religioso de pertencimento ao território”.
O professor guarani Marcos Moreira, quando foi meu aluno no curso de formação de professores, entrevistou o velho Alexandre Acosta, da aldeia de Cantagalo (RS) que, entre outras coisas, falou:
Esta terra que pisamos é um ser vivo, é gente, é nosso irmão. Tem corpo, tem veias, tem sangue. É por isso que o Guarani respeita a terra, que é também um Guarani. O Guarani não polui a água, pois o rio é o sangue de um Karai. Esta terra tem vida, só que muita gente não percebe. É uma pessoa, tem alma. Quando um Guarani entra na mata e precisa cortar uma árvore, ele conversa com ela, pede licença, pois sabe que se trata de um ser vivo, de uma pessoa, que é nosso parente e está acima de nós.
Os líderes Kaiowá reforçam essa relação com a terra quando lembram, na carta citada, que o criador do mundo criou o povo Guarani para ter alguém que admirasse toda o esplendor da natureza.”O nosso povo foi destinado em sua origem como humanidade a viver, usufruir e cuidar deste lugar, de modo recíproco e mútuo” – escreve o kaiowá Tonico Benites, doutorando em antropologia. “Por isso, nós somos a flor da terra, como falamos em nossa língua: Yvy Poty” – completam os líderes Kaiowá.
Se a terra é um parente, a relação com ela deve ser de troca equilibrada, de solidariedade. É como a mãe que dá o leite para o filho. Ela dá, sem pensar em cobrar. Ela não cobra nada, mas socialmente espera que um dia, se precisar, o filho vai retribuir.
“Tudo isso é frescura” – dizem os fazendeiros e pecuaristas que pensam como o coronel Jesuíno: a terra é pra ser usada. E ponto final. Portanto, o conflito não é apenas fundiário, mas cultural, com proporções tão graves que a vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat, considera essa como “a maior tragédia conhecida na história indígena em todo o mundo”. É que os Guarani decidiram defender a terra ferida e para isso realizaram um movimento de ocupação pacífica do território tradicional localizado à margem de cinco rios: Brilhantes, Dourados, Apa, Iguatemi e Hovy.
Apenas uma pequena parte do antigo território, que lhes permita sobreviver dignamente, é reivindicada. É o caso da comunidade Pyelito Kue-Mbarakay, no extremo sul do Estado, onde vivem 170 Kaiowá, dentro da fazenda Cambará, às margens do rio Hovy, município de Iguatemi (MS). A comunidade está cercado por pistoleiros e lá já ocorreram recentemente 4 mortes, duas por espancamento e tortura dos jagunços e duas por suicídio.
Somos Kaiowá
Um juiz federal, Sergio Henrique Bonacheia, determinou, em setembro último, a expulsão dos índios. Ele afirmou que não interessa “se as terras em litígio são ou foram tradicionalmente ocupadas pelos índios ou se o título dominial do autor é ou foi formado de maneira ilegítima”. Os índios vão ter que sair – decidiu o magistrado.
O Ministério Público Federal e a Funai recorreram ao Tribunal Regional Federal contra tal decisão. Os índios se rebelaram, escreveram uma carta anunciando que dessa forma o juiz está decretando a morte coletiva, que ele pode enviar os tratores para cavar um grande buraco e enterrar os corpos de todos eles: 50 homens, 50 mulheres e 70 crianças, que eles ali ficam, como um ato de resistência, para morrer na terra onde estão enterrados seus avós.
O suicídio coletivo – assim a carta foi interpretada – teve enorme difusão nas redes sociais e ampla repercussão internacional, “com o silêncio aterrador” da mídia nacional, como lembrou Bob Fernandes, autor de um dos três artigos esclarecedores e informativos. Os outros dois foram de Eliane Brum e de Tonico Benites.
Construiu-se rapidamente nas redes sociais uma corrente de solidariedade, com sugestões para a realização de atos de protestos em muitas cidades brasileiras. “Nós todos somos Kaiowá” – disseram, parodiando um slogan que ficou célebre em maio de 1968, na França: “Nous sommes tous des juifs allemands”. Um desses atos, marcado para hoje, domingo, dia 28, será no Centro Cultural dos Correios, no Rio de Janeiro, onde está instalada uma exposição sobre a vida da atriz Regina Duarte, proprietária de uma fazenda em MS e considerada porta-voz dos fazendeiros, por uma declaração infeliz que deu.
Diante da gravidade dos fatos, o governo federal convocou reunião de emergência para a próxima segunda-feira, com a participação de vários órgãos governamentais. A possibilidade de se efetivar o suicídio coletivo dos Kayowá se apoia em dados oficiais do Ministério da Saúde: nos últimos onze anos, entre 2000 e 2011, ocorreram 555 suicídios, uma das taxas mais altas do mundo.
Se a tragédia acontecer, uma pergunta vai ter que ser respondida: suicídio coletivo? Será mesmo? A ideia de suicídio é, num certo sentido muito cômoda, porque isenta de culpa a terceiros. Mas se você é levado por alguém a se matar, trata-se de suicídio ou de uma forma de homicídio? O artigo 122 do Código Penal Brasileiro estabelece pena de reclusão para o agente que, através de ato, induz ou instiga alguém a se suicidar ou presta-lhe auxílio para que o faça. Quem pode ser incriminado neste caso?
A pergunta deve ser feita ao governador Puccinelli, implicado pela Operação Uragano da Polícia Federal num esquema ilegal de pagamento de propinas a deputados e desembargadores, que em maio de 2010, durante a abertura da Expoagro, em Dourados, incitou os fazendeiros contra os índios. A pergunta pode ser repassada também à senadora Kátia Abreu, presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, que em artigo, ontem, na Folha de São Paulo, teve o descaro de escrever, com certa dose de cinismo e de deboche:
Se a Funai pensa, por exemplo, que são necessárias mais terras para os indígenas pela ocorrência da explosão demográfica em certa região, nada mais fácil do que comprar terras e distribuí-las.
O discurso da senadora – convenhamos – é transparente, porque evidencia a relação exclusivamente mercantil que têm com a terra, ela e aqueles que ela representa e da qual é porta-voz. Mostra ainda que ela não é capaz de entender a relação amorosa e religiosa dos Guarani com a terra. O coronel Jesuíno, certamente, assinaria embaixo de tal discurso.
cf. também:
por José Ribamar Bessa Freirecf. também:
professor e coordenador do Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ), investigador no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO).
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