O deserto do Saara, no norte da África, e a Amazónia, na América do Sul, estão muito mais próximos do que os 5 mil quilómetros que separam as duas regiões.
Cerca de 70 por cento da chuva que cai na Amazónia é provocada por um fenómeno de condensação em que partículas de poeira no deserto do Saara cruzam o Oceano Atlântico, formando precipitações.
O professor Tomás Ferreira Domingues, do Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, explica como essa íntima relação entre o Saara e a Amazónia revela o alto nível de globalização, reforçando a noção do quanto é importante a preservação do meio ambiente em todo o mundo.
Ainda segundo Domingues, o deserto do Saara, além de ser responsável pelas chuvas na Amazônia, ajuda também a manter a riqueza de biodiversidade da região, trazendo nutrientes imprescindíveis à própria vegetação. #
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Como o deserto do Saara participa do regime de chuvas da Amazônia, a 5 mil km de distância
Pouco mais de 5,3 mil km e o Oceano Atlântico separam as cidades de
Manaus (AM) e Nouakchott, a capital da Mauritânia, no deserto do Saara.
Apesar da distância, o deserto do norte da África e a floresta amazônica
têm uma relação mais estreita do que senso comum nos leva a acreditar.
Tão inesperado quanto esta ligação é o fato de ser o deserto que
beneficia a mata, e não o contrário - sendo responsável pela maior parte
das chuvas torrenciais que caem sobre a região, mantendo sua
exuberância e biodiversidade. Além de enviar toneladas de nutrientes
para sua vegetação, como o fósforo.
Os "núcleos de condensação" - a parte da nuvem em que o vapor de água
se condensa - são formados, entre outros elementos, por partículas em
suspensão no ar - poeira, por exemplo. No caso da floresta amazônica,
uma parcela desses aerossóis é proveniente do Saara.
"Este fenômeno de transporte ocorre principalmente na parte norte da
Amazônia, mas já foi registrado também na área central da região, como,
por exemplo, ao sul de Manaus", explica o físico Paulo Artaxo, do
Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP).
Ele é um dos integrantes de uma equipe de pesquisadores do Brasil, dos
Estados Unidos e da Alemanha que vem desenvolvendo, há uma década, um
trabalho que levou à descoberta de que a poeira do deserto ajuda a
formar nuvens sobre a Amazônia Central, onde se localiza Manaus, que são
responsáveis por cerca de 80% das chuvas que caem na região.
Mas como o deserto cria precipitações a milhares de quilômetros de distância?
Segundo Artaxo, o fenômeno ocorre todos os anos. Ele começa com as
tempestades no Saara, que levantam toneladas de poeira e areia. Esse
material é transportado de lá, por cima do Oceano Atlântico, até a
floresta amazônica, numa distância mínima de pelo menos 5 mil km - entre
a parte mais ocidental do deserto e Manaus. "Isso ocorre de fevereiro a
maio, pois, nesta época, a chamada Zona de Convergência Intertropical
(ITCZ, na sigla em inglês), fica ao sul de Manaus, favorecendo o
transporte de massas de ar do hemisfério Norte para a Amazônia Central",
explica Artaxo.
Ele diz que, para que haja chuva, são necessários três ingredientes
básicos: vapor de água, condições termodinâmicas ideais e as partículas
que servirão de meio para que o vapor possa se condensar. "Os grãos de
poeira do Saara, que também podem ser chamados de aerossóis, operam como
uma destas partículas em que o vapor de água se condensa", explica
Artaxo, mencionando a hipótese mais aceita para a explicação do
fenômeno.
"Ou seja, eles atuam como núcleos de condensação de gelo, fazendo com
que gotas líquidas, ao atingirem altas altitudes e temperaturas menores
que -10 ºC, congelem e formem gotas de gelo, que são eficientes no
processo de formação de chuva na Amazônia."
Artaxo conta que as medidas da concentração de partículas do Saara
foram feitas na Amazon Tall Tower Observatory (ATTO), ou Torre Alta de
Observação da Amazônia, com 325 metros altura, o equivalente a um prédio
de 80 andares. Erguida na reserva ambiental do Uatumã, no município de
São Sebastião do Uatumã, a cerca de 180 km de Manaus, é a maior torre de
monitoramento ambiental e atmosférico do mundo. O objetivo dela é
coletar dados sobre a interação entre a vegetação e atmosfera.
Teste químico
Para testar sua hipótese, os pesquisadores realizaram experimentos em
laboratório. Parte das partículas coletadas na torre ATTO foram
injetadas em uma câmara, na qual é possível simular a formação das
nuvens convectivas - nuvens com grandes altitudes verticais, que podem
chegar a 15 km da base ao topo, responsáveis chuvas torrenciais e
rápidas.
Segundo Artaxo, essa câmara reproduz as condições da atmosfera a até 18
km acima do solo, onde prevalecem as baixas pressões e temperaturas - de
até -70 ºC. Na natureza, é num ambiente parecido que se formam as
nuvens convectivas.
A certeza de que a poeira encontrada no local vem do Saara e não de um
terreno próximo à torre é dada pela sua composição química, mais
especificamente, pela presença e proporção de alguns elementos, como
alumínio, manganês, ferro e silício. De acordo com Artaxo, a quantidade
desses elementos nas partículas coletadas na Amazônia é igual a
encontrada na poeira do Saara. "Além disso, há a correlação entre a
presença desses aerossóis e o movimento das massas de ar", diz. "Isso
prova que eles vieram mesmo do deserto africano."
Os cientistas ainda não têm 100% de certeza sobre o mecanismo pelo qual
os aerossóis do Saara ajudam a formar as nuvens e, por consequência, as
chuvas que caem torrencialmente na região. A hipótese mais provável é
que o ferro, presente na poeira do deserto, pode funcionar como um
suporte, sobre o qual o vapor d'água se condensa, formando núcleos de
gelo, que depois se transformam em gotas de chuva.
Fertilizante natural
Não são apenas simples grãos de poeira, entretanto, que o Saara manda para a Amazônia.
Em 2015, a Nasa, a agência espacial americana, divulgou um estudo
segundo o qual todos os anos o deserto envia, junto com o pó, 22 mil
toneladas de fósforo, nutriente encontrado em fertilizantes comerciais e
essencial para o crescimento da floresta. É quase a mesma quantidade
que a mata produz, com a decomposição das árvores caídas e, em seguida,
perde com as chuvas e inundações.
Segundo o levantamento da Nasa, todos os anos 182 milhões de toneladas
de poeira - mais ou menos o equivalente a 690 mil de caminhões de areia -
saem do Saara para as Américas do Sul e Central. Desse total, cerca de
28 milhões de toneladas - ou 105 mil caminhões - caem na Bacia
Amazônica, e, junto com elas, o fósforo.
Amazônia e Saara: estonteante dependência
A Amazônia é a maior floresta tropical húmida da Terra. E o Saara é o maior e mais quente deserto do mundo. Na aparência, nada de mais diverso e sem relação. Uma imensa selva verde húmida no coração da América do Sul, e um interminável areal, composto de poeira e pedra, onde sopram ventos ardentes, no norte da África. Ambos estão, porém, vitalmente unidos numa interdependência tão profunda que faz com que um dependa do outro para sobreviver.
Existe um fenómeno que envolve ventos e minérios sem vida do deserto e que sustenta a vida vegetal e animal na maior floresta tropical húmida do planeta. Esse fenómeno une as duas imensas realidades geográficas dissemelhantes passando por cima do Oceano Atlântico.
Pela primeira vez um satélite da NASA mensurou em três dimensões a quantidade de poeira do Saara trazida para a Amazónia pelos ventos que atravessam o Atlântico, permitindo calcular não só a poeira, mas também o fósforo que vem no meio dela: 22.000 toneladas de fertilizante puro, do qual a Amazônia depende para existir.
Uma equipa de investigadores comparou o conteúdo de fósforo da poeira do Saara na depressão de Bodélé com dados das estações científicas de Barbados, no Caribe, e de Miami, nos EUA.
Os resultados do estudo foram publicados na Geophysical Research Letters, revista da American Geophysical Union, segundo divulgou a NASA.
A pesquisa, liderada por Hongbin Yu, cientista da atmosfera da Universidade de Maryland, que trabalha no Goddard Space Flight Center da NASA em Greenbelt, fez os cálculos com base em dados colectados pelo satélite Calipso, da NASA, entre 2007 e 2013.
Segundo Yu, a poeira é especificamente levantada na Depressão de Bodélé, no Chade, um antigo lago seco cujas rochas compostas por micro-organismos mortos estão carregadas de fósforo, nutriente essencial para o crescimento das plantas e do qual a Amazónia depende para florescer.
Os nutrientes são escassos no solo amazônico e alguns deles, como o fósforo, são lavados pelas chuvas que em princípio condenariam a floresta à morte. Porém, segundo Yu, o fósforo que chega do Saara, estimado em 22.000 toneladas por ano, é aproximadamente a mesma quantidade perdida pelas chuvas e pelas enchentes. Esse fósforo corresponde a apenas 0,08% das 27,7 milhões de toneladas de poeira do Saara depositadas anualmente na Amazónia.
No total, os ventos carregam 182 milhões de toneladas de poeira por ano. O volume equivale à capacidade de carga de 689.290 caminhões. O pó viaja 2.800 quilómetros sobre o Atlântico, até cair na superfície arrastado pela chuva. Apesar da parte que se perde pelo caminho, chegando à costa do Brasil ficam ainda no ar 132 milhões de toneladas. Destas 27,7 milhões de toneladas – capazes de encher 104.908 caminhões – acabam por cair sobre a superfície da bacia Amazónica, seguindo as restantes 43 milhões de toneladas para o Caribe.
Ë o maior transporte de poeira do planeta, não obstante as importantes variações registadas a acda ano, em função dos ventos e de outros factores. Em todo o caso, o fenómeno afirma o deserto morto como sustento imprecindível da vida na exuberante floresta tropical e húmida. Sem o deserto a Amazónia não existiria.
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