Ocupações
humanas, lugares sagrados e históricos, trilhas, paisagens e locais
para manejo de peixes, da floresta e da caça. São estes os pontos
mapeados pelos pesquisadores indígenas do noroeste amazônico, no
município de São Gabriel da Cachoeira (AM), em uma inédita iniciativa de
cartografia social na região conhecida como "Cabeça do Cachorro". O
resultado são 12 mapas elaborados com desenhos e detalhes minuciosos
feitos pelos índios de várias etnias.
Um dos mapas, que abrange todo o trecho do Baixo Rio Uapés, está disponível online e pode ser baixado aqui.
O Baixo Rio Uaupés é considerado a porta de entrada da Terra Indígena
Alto Rio Negro, a terceira maior em extensão territorial do
Brasil — atrás apenas das TIs Yanomami e Vale do Javari.
Os outros 11 mapas foram impressos e estão sendo distribuídos nas
comunidades para uso das escolas, associações e lideranças indígenas,
moradores, agentes de saúde e profissionais que atuam na região.
Geografia indígena
Geografia indígena
Os
povos indígenas rionegrinos têm uma relação peculiar com as paisagens.
Suas narrativas míticas e rezas xamânicas estão cheias de referências
geográficas que traçam rotas e lugares especiais relacionados à origem
do mundo e de seus primeiros ancestrais, que chegaram no Alto Rio Negro
em uma cobra canoa. Tais lugares sagrados guardam ainda as memórias e os
poderes criativos desses primórdios e fundamentam um complexo sistema
xamânico de manejo do território e da vida.
Os
conhecedores tradicionais dizem que muitos jovens, hoje, não conhecem
esses locais sagrados e nem suas histórias, por isso desrespeitam regras
importantes relacionadas ao uso do território, como não pescar e caçar
em algumas dessas áreas. Os mapas são, portanto, uma maneira de
transmitir esse conhecimento dos mais velhos para os mais jovens,
valorizando a cultura tradicional e a história local, baseada na
transmissão oral.
Além
disso, o mapeamento participativo pode ajudar a mediar certos conflitos
intercomunitários, muitas vezes causados pelo desrespeito aos limites
das áreas historicamente reservadas ao manejo de caça, pesca e
extrativismo pertencente a uma determinada comunidade. Tanto os
indígenas quanto os assessores técnicos acreditam que esse trabalho
colabora diretamente na gestão territorial e ambiental da terra indígena
Alto Rio Negro, cujas comunidades estão elaborando seu Plano de Gestão
Territorial e Ambiental(PGTA), com previsão de conclusão em 2019.
“Nossos
ancestrais já traçavam os limites do nosso território. Daquela ponta
até aquela ilha, daquela serra até aquele monte, tudo aqui tem nome e
tem significado. Os antigos pescavam somente para o seu próprio consumo,
para a troca com outros produtos como sal, sabão, fósforo e anzol. A
pesca era feita só na sua própria área de ocupação. Mas, hoje, muitos
não conhecem mais esses limites, principalmente os jovens e os parentes
recém-chegados de outras regiões. Por isso esses mapas são bem
importantes para a gente”, reflete a liderança indígena do Baixo Uaupés,
Francisco de Assis Costa, da comunidade de Ananás.
Riqueza multiétnica
Em
termos de diversidade étnica, o mapeamento também é extremamente
valioso, uma vez que reúne diferentes etnias da região, como Tukano,
Desano, Tariano e Piratapuya, predominantemente, além de comunidades com
famílias Baniwa, Baré, Tuyuka, Siriano, Wanano, Hupdah, Arapasso e
Kubeo.
As
comunidades indígenas do Baixo Uaupés, rio que nasce na Colômbia
(chamado por lá de Vaupés), foram formadas entre fins do século XIX e
início do XX por clãs e famílias vindas de regiões distantes (rio
acima); sobretudo do rio Papuri, importante afluente do Uaupés. Vale
ressaltar que, depois do rio Branco, o Uaupés é o segundo maior
tributário do rio Negro.
“Foi um trabalho importante de reunir todo um conhecimento sobre o território que é oral-visual-mental-espiritual
num outro veículo, mais tangível, que é o mapa. Conhecimentos que os
índios possuem, que informam cotidianamente suas práticas, mas que não
tinham ainda sido sistematizados, reunidos e apresentados desse modo”,
afirma Aline Scolfaro, antropóloga do Instituto Socioambiental (ISA),
uma das responsáveis pelas oficinas de cartografia social feitas nas
comunidades indígenas.
Trabalho colaborativo
Envolvendo
uma série de atividades de pesquisa e de formação, os pesquisadores
conhecidos como Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (AIMAs) colocaram a
mão na massa e fizeram um grande esforço de sistematizar todo um
conjunto de conhecimentos cosmológicos, históricos e ecológicos sobre
seu território e materializá-los nessa série cartográfica.
“A
pesquisa e materialização nos mapas das toponímias, nome dos lugares e
seus significados, em português e na língua tukano, foi riquíssima no
processo, aumentando a lembrança e reconhecimento de lugares históricos e
sagrados, assim como importantes referências dos igarapés, lagos,
ilhas, pontas, cachoeiras e serras", ressalta Renata Alves, ecóloga do
ISA e co-organizadora da coleção, responsável pela parte de cartografia.
"A iconografia do trabalho, isto é, a representação em desenhos
próprios, usados nos ícones dos mapas também exigiu bastante
conhecimento e dedicação dos artistas da rede de AIMAs”, completa.
A
formação dessa rede de AIMAs do Baixo Uaupés, inspirada na experiência
feita em outro rio da região, o Tiquié (onde foram lançados os primeiros
mapas colaborativos e interculturais dessa coleção), foi vital para
aproximar jovens e velhos conhecedores. Entre 2014 e 2016, foram
realizadas várias oficinas de mapeamento com os AIMAs, tendo o ISA,
Funai e Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), como
parceiros nas atividades do Uaupés.
“Os
conhecedores mais velhos foram fundamentais nesse processo, pois eles
são os detentores dos mapas mentais do território, em sua dimensão
física e espiritual. Grande parte do que foi mapeado foi plotado
diretamente pelos índios sobre imagens de satélite e bases cartográficas
da região. Mas alguns locais, como lugares sagrados, serras e trilhas
antigas foram também registradas pelos AIMAs com aparelhos de GPS”,
comenta Scolfaro.
A
juventude indígena logo se engajou no trabalho de manejo ambiental. A
ideia era mesmo que os jovens estivessem à frente das iniciativas de
pesquisa e mapeamento e assumissem, com o tempo, a função de monitorar e
até fiscalizar os territórios. Pois o Baixo Uaupés, por ser uma região
com abundância de peixe e relativamente próxima da sede do município de
São Gabriel, atrai muitos pescadores de fora que praticam ali a pesca
predatória para depois vender o pescado na cidade.
“Depois
que me tornei AIMA comecei a pensar em coisas diferentes do que
pensava. Comecei a pensar em como defender nosso povo, nosso território e
levar para a frente as políticas de defesa dos povos indígenas”,
reflete Rosivaldo Miranda, jovem Piratapuya da comunidade de Açaí, no
Baixo Uaupés.
Além
de ISA, FOIRN e Funai, as ações no Baixo Uaupés e a produção dos mapas
contaram também com apoio do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN), Fundação Rainforest da Noruega e Fundação
Moore. #
Cartô Brasil Socioambiental — É
uma série de publicações cartográficas, aberta a parcerias e sem
periodicidade regular, que pretende apresentar um panorama de algumas
das principais questões socioambientais da atualidade sob diferentes
perspectivas e recortes territoriais (país, biomas, bacias
hidrográficas, municípios, estados, cidades e outros). A série traz
mapas elaborados em linguagem comunicativa e acessível a públicos
variados, em diversos suportes e formatos, e é mais um trabalho que
parte da base de dados do ISA mantida desde a sua fundação, em 1994.
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