Começámos com o açaí com peixe frito, tomámos o tacacá da
dona Maria à hora do lanche, como convém, ficámos com a boca dormente do
jambu, provámos maniçoba e, com o chef Thiago Castanho, descobrimos
como essa despensa mágica que é o Pará mudou a forma como os brasileiros
encaram a sua gastronomia.
as cadeiras de plástico colocadas ao longo da parede na Avenida Nazaré, a
principal de Belém, no estado brasileiro do Pará, já estão quase todas
ocupadas. São sobretudo senhoras, por volta dos cinquenta, sessenta
anos, que aguardam pacientemente, ao lado de uma banca de rua. Estamos
no sítio certo, porque um cartaz confirma que é aqui o célebre Tacacá da
Dona Maria.
À nossa frente, na avenida, decorre uma operação policial, com a
polícia a fiscalizar todas as motos que passam, um espectáculo que
mantém entretidos os clientes da dona Maria. Crianças saem do Colégio
Nazaré, ali ao lado. Um miúdo faz uma birra porque quer um brinquedo que
um vendedor ambulante expõe. A mãe tenta resistir à birra, diz que é
muito caro, e, perante o choro que aumenta, resolve telefonar ao marido
para perguntar o que fazer.
Nisto pára, ali mesmo no meio da confusão, uma carrinha. Do interior
saltam várias pessoas que, atarefadíssimas, começam a tirar grandes
panelas do interior. Cada um sabe exactamente qual a sua função. Uns
começam a preparar a banca, estendem toalhas, abrem espaço, outros
colocam as panelas e organizam as cuias, as pequenas cabaças escuras
onde se serve o tacacá. Os clientes já se puseram de pé e fazem fila.
Tomar o tacacá como quem toma o chá das cinco é uma tradição no Pará,
e o tacacá da dona Maria é uma instituição com mais de trinta anos de
história, sempre aqui nesta grande avenida de Belém. Não é atracção
turística, é de verdade mesmo. Depois de servidas, as pessoas voltam a
sentar-se nas cadeiras brancas, sorvendo o caldo, feito de tucupi, um
molho amarelo extraído da raiz da mandioca brava, cozido para eliminar o
veneno e depois fermentado durante alguns dias, com jambu, uma erva que
provoca uma ligeira sensação de anestesia na boca, goma de tapioca e
camarões.
Primeira lição: açaí
Comer em Belém do Pará exige uma aprendizagem. Tudo começa com os
nomes. Pacientemente, Cleber e Adriana, os nossos incansáveis guias
nesta viagem, repetem vezes sem conta como se chama cada fruto, cada
planta, cada parte da mandioca. Mas não há meio de decorarmos.
A nossa primeira lição, ainda antes do tacacá, é com algo que
aparentemente — mas só aparentemente — nos é muito mais familiar: o
açaí. Vamos então contar esta história de descoberta de sabores pela
ordem em que a vivemos.
Acabámos de aterrar em Belém. É hora do almoço. Cleber espera-nos no
aeroporto para nos levar até ao hotel e durante o caminho vai-nos
explicando que aqui há a hora da chuva, e que esta pode acontecer de
manhã ou à tarde, mas sempre mais ou menos a horas certas. Dura para aí
uns vinte minutos, mas convém planearmos os nossos dias pensando nela:
marcamos o encontro para antes ou depois da chuva?
Para já, não chove e vamos almoçar. Apanhamos Adriana no hotel e
seguimos para o Lá Em Casa, restaurante que fica na Estação das Docas,
antigo Porto de Belém, renovado em 2000. Pioneiro do trabalho que tem
estado a ser feito em torno da gastronomia do Pará — e dos inúmeros
produtos exóticos que fascinaram os mais famosos chefs
brasileiros, a começar por Alex Atala, do DOM, em São Paulo, considerado
o 6.º melhor restaurante do mundo e o 2.º melhor da América Latina na
lista dos World’s 50 Best —, o Lá Em Casa é o sítio certo para ficarmos a
conhecer os pratos mais emblemáticos da região.
É no buffet do Lá Em Casa, com vista para a baía do Guajará, sobre a
qual começam já a adensar-se algumas nuvens, que começamos a descoberta
da gastronomia paraense. Avançamos então para o pato no tucupi (o tal
suco da mandioca brava usado no tacacá), que leva também jambu; o
pirarucu, um dos peixes mais utilizados no Pará, que pode ser um animal
enorme, atingindo os 80 quilos, e que é muitas vezes comido seco, à
semelhança do bacalhau; e ainda a deliciosa maniçoba, um prato muito
trabalhoso porque é feito com a folha da mandioca, que tem que ser moída
e ferver durante quatro dias até se transformar numa pasta verde
servida depois com carnes várias, secas, fumadas e enchidos, à
semelhança da feijoada.
No final, quando provamos os doces, trazemos uma tigela de açaí, sem
saber exactamente qual a melhor abordagem. À primeira colherada, o açaí
mostra-se pouco amigável e Cleber e Adriana aconselham-nos a juntar
açúcar. De facto, com açúcar o açaí muda completamente, e já o comemos
bem, acompanhado por farinha-de-água, ou tapioca, leve e crocante. No
entanto, não é assim que os paraenses fazem, como vamos aprender nessa
noite.
Quando saímos do restaurante começa a chover, mas, ao contrário das
promessas, não dura 20 minutos. Chove durante horas e abrir as janelas
do quarto é um erro que se paga caro: o nível de humidade é tão alto que
tudo fica imediatamente molhado. Mesmo assim, algumas horas mais tarde,
arriscamos sair do hotel para ir jantar ao Point do Açaí, onde tudo é
servido acompanhado por açaí na tigela. Nas mesas há logo uma tigela e
dois tipos de farinha (a de água e a tapioca) para juntar ao açaí.
Rendemo-nos à tradição e pedimos pirarucu frito.
Para quem vem de fora é uma estranha mistura de sabores — o açaí
frio, ligeiramente amargo, a farinha crocante, o peixe, salgado e
intenso. Começamos a perceber a ideia. Mas só no dia seguinte, no
Mercado Ver-o-Peso, compreendemos a real dimensão que esta tradição
ainda mantém aqui: logo de manhã, nas bancas de comida do mercado,
começa-se a preparar o açaí, moendo os grãos, extraindo a polpa,
enchendo grandes recipientes com o creme roxo escuro, e fritando o
peixe. Em breve, os vendedores do mercado, que chegaram ali de
madrugada, começam a aproximar-se para comer o seu açaí com peixe frito.
Só nessa noite é que, finalmente, encontramos Thiago Castanho, que,
com o seu irmão, Felipe, é hoje o grande responsável pela redescoberta
dos extraordinários produtos do Pará e por uma importante mudança na
forma de os trabalhar – e que assinará também os menus dos voos da TAP
de Belém para Lisboa, a inaugurar em Junho. Jantamos no seu Remanso do
Bosque, o restaurante que abriu com Felipe, precisamente para fazer uma
cozinha mais arriscada do que a do Remanso do Peixe, o primeiro
restaurante da família Castanho, fundado pelo pai.
As pesquisas de Thiago
“O primeiro chef a trabalhar com ingredientes daqui e a ter orgulho
nisso foi o Paulo Martins do Lá Em Casa”, recorda Thiago, voz calma,
sorriso doce, olhos enormes. “Durante muito tempo, no Brasil, a alta
gastronomia restringia-se a fazer ode a coisas de fora, à cozinha
francesa. A gente saía para restaurantes e não imaginava comer um menu
todo com produtos da terra. Isso, na cabeça dos clientes, não era o luxo
que eles procuravam.”
Quando ele começou deparou-se com esse preconceito. “Logo no início
do nosso trabalho, a gente fez um jantar numa importadora de vinhos e um
dos clientes, quando fez a reserva, pediu o cardápio. Quando leu,
cancelou a reserva, dizendo ‘tapioca, eu como na feira’. O cara não
imagina que a gente trabalha a tapioca de outras formas, por isso na
cabeça dele não tem valor. Isso hoje já mudou muito. Pelo facto de muita
gente estar usando ingredientes de uma boa forma, e fora do Pará, o
próprio Pará começou a entender que temos coisas a que devemos dar muito
valor.”
Thiago e Felipe fazem esse trabalho desde o início. “O nosso trabalho
tem vários momentos. Há um momento em que a gente pesquisa e lê muito.
Tem a parte de pesquisa de campo quando a gente vai numa comunidade para
ver como se consome”, conta. “Eu sou muito novo, tenho uma vivência
diferente do meu pai, que viveu o interior, pescou. Eu nunca precisei de
pescar na minha infância para me sustentar. Estou cada vez mais
querendo viver isso para entender. Isso influencia a criação de um
prato.”
Quando diz que o pai “viveu o interior”, Thiago quer dizer que ele
conhece bem as gentes ribeirinhas, que vivem para o interior do Pará. É
para aí que ele viaja agora, à procura de novos ingredientes, de
técnicas, de histórias — porque, diz, tudo isto não faz sentido sem as
histórias das pessoas. “Muitas vezes, o que a gente coloca num menu de
degustação não é mais do que um prato tradicional do interior do Pará,
um modo de fazer local de algum lugar.”
É assim, por exemplo, com o beiju de tapioca na folha de bananeira,
que abre o menu de degustação no Remanso do Bosque. Inspirado nos
beijus, os pequenos bolinhos de fécula de mandioca que as mulheres
ribeirinhas fazem, Thiago juntou-lhe apenas o queijo. Usa-os também
noutra versão para o beiju cica com coalhada de leite de búfala (o
Marajó, arquipélago junto a Belém, é conhecido pelos seus queijos de
búfala). Pelo meio apresenta uma brincadeira, a tacacachaça, uma espécie
de tacacá mas feito com cachaça de jambu.
Todo o menu é baseado nestes produtos da terra que dantes tanto
assustavam a fina-flor de Belém: há um magnífico creme de pupunha (fruto
de palmeira-pupunha) com pele de arroz e manteiga de castanha; há
sururu (um bivalve) de São Caetano com farofa de suruí; pirarucu
defumado com nhoque de banana da terra e farofa de castanha; filhote
(outro peixe muito popular na Amazónia, de carne branca, firme e
saborosa) assado na brasa com leite de coco, camarão seco, abóbora e
dendê; mel de abelha nativa uruçu com farinha e limão; arroz de pato com
tucupi e jambu; e, como sobremesa, bacuri (deliciosa fruta amazónica de
polpa branca), sagu de café e toffee de cumaru; e por fim, num vaso de plantas e com uma pequena pá, a jardinagem de chocolate e cupuaçu da ilha do Combu.
“No prato do pirarucu, por exemplo, peguei nos mesmos ingredientes de
um prato tradicional que é o pirarucu de casaca, o peixe com banana e
farofa, e criei o mesmo sabor mas de outra forma”, explica Thiago. “O
filhote assado na brasa, que vem na folha de bananeira, é quase um
moquém [moquear é a técnica usada pelos indígenas para tratar o peixe],
se eu deixasse mais tempo para secar, virava um peixe moqueado.”
Cada viagem para o interior do Pará é uma nova descoberta para
Thiago. “A gente está só no início”, conta, explicando que só começou a
olhar para os ingredientes de outra forma, no início da sua carreira,
depois de ter passado seis meses em Portugal a estagiar com Vítor
Sobral. “Vi o que ele fazia com os ingredientes da terra e o que eu
podia fazer com técnicas aqui. Quando fui, olhava para os ingredientes
como qualquer paraense, mas quando voltei já olhava com mais liberdade,
mais livre daquela prisão cultural da tradição.”
Bendita mandioca
Estes mundos da Amazónia e do Pará vão chegando cada vez mais longe —
em grande parte porque Thiago e Felipe os têm divulgado, em parte
porque outros chefs, como Alex Atala ou Ana Luísa Trajano, começaram a levá-los também para São Paulo e outros pontos do Brasil e do mundo.
Mas aqui em Belém, e sobretudo depois da morte, em 2010, do pioneiro
Paulo Martins, fundador do Lá Em Casa (que hoje tem à frente a sua
mulher e filhas), são os irmãos Castanho os grandes embaixadores da
gastronomia paraense. Foi por isso que na manhã do dia em que jantámos
no Remanso, Thiago esteve no Mercado Ver-o-Peixe a gravar uma peça para a
televisão local. E foi por isso que, apesar do cansaço, aceitou fazer
outra madrugada e no dia seguinte (ou seja, dali a algumas horas)
encontrar-se connosco novamente no mercado para gravar um vídeo
explicando tudo o que se pode fazer com a mandioca. Encontro marcado,
vamos dormir.
No dia seguinte, quando chegamos, o mercado já está em actividade há
várias horas. Marcámos encontro ao pé da zona da mandioca e Thiago
senta-se entre os homens que, com facalhões assustadores e gestos
certeiros, descascam as mandiocas, sentados em bancos baixinhos,
enquanto as cascas se amontoam à volta. Ao lado estão as bancas que
vendem os produtos retirados da mandioca.
Numa banca de maniva (a tal pasta verde feita da folha da mandioca,
em versão “pré-cozida” ou “cozida 7 dias”), uma mulher tritura as folhas
verdes numa máquina onde se lê “Deus dê forças aos meus inimigos para
que assistam de pé à minha vitória”. Outra distribui por sacos de
plástico a pasta destinada a fazer a maniçoba. Outros vendem tucupi em
garrafas, jambu cozido, macaxeira (inhame) ralada e coco ralado.
A pouco e pouco, alguns nomes vão-se tornando mais familiares. Mas
quando, depois de uma lição sobre o aproveitamento total da mandioca,
herança dos indígenas, descemos a outra zona do mercado, estamos
perdidos de novo. “Este é que é o cupuaçu?”. “Como se usa o jenipapo?”,
“Não tinha percebido que a pupunha era assim.” Abrimos a boca de espanto
perante uma jaca com mais de dez quilos que um vendedor simpaticamente
segura no ar para podermos fotografar e diligentemente tomamos nota de
todos os nomes que nos dizem, do tucumã ao biribá, do taperebá ao piquiá
(mais tarde, Cleber há-de enviar-nos por email uma longa lista com
todos os nomes, fotos e descrições de cada fruta que vimos).
Há imagens da Virgem da Nazaré, enfeites coloridos de Natal e
televisões com apresentadores eufóricos e acompanhantes meio despidas.
Homens cortam castanhas de caju em bancadas de madeira que, de tantos
anos de uso, ganharam já as marcas profundas de cada golpe que
receberam, outros abrem cocos, um velhote mói cominhos, os cheiros
misturam-se no ar, e ainda nem chegámos à zona das ervas que curam tudo e
tudo prometem. Frascos pendurados em molhos anunciam óleo de linhaça e
arnica, ao lado de outros identificados como cicuta.
É aí que encontramos Beth Cheirosa, verdadeira instituição local —
nem vale a pena perguntar-lhe como tudo começou, porque ela desaparece
no meio das fotos tiradas ao lado de celebridades várias e vai logo
buscar uma folha A4 com o seu currículo. Aí lê-se que tem 48 anos de
Ver-o-Peso, mas a sua fama ultrapassa fronteiras, e que dá até palestras
em escolas e universidades, transmitindo o conhecimento dos poderes das
ervas amazónicas que recebeu da avó, a Mãe Velha, e da mãe, já
conhecida como dona Cheirosa.
Com Thiago, Cleber e Adriana andamos pela zona das farinhas para nos
mostrarem como a mandioca se transforma em tanta farinha que serve para
tanta coisa diferente, da goma usada no tacacá às farinhas que se juntam
ao açaí. Mas é a tapioca com coco do senhor Davi — e a boa disposição
deste homem de 73 anos, 47 de Ver-o-Peso, que garante que não sabe fazer
mais nada do que vender farinha, mas que sobre farinha sabe tudo — que
mais nos encanta. Thiago já o tinha dito: “Não são os ingredientes, são
as pessoas, e as histórias das pessoas, que nos transformam, que nos
fazem crescer.” E no Pará, a aventura está apenas a começar.
Próxima paragem? Ilha do Combu, em busca do cacau orgânico da dona Nena, aquele que Thiago usa nas suas sobremesas.
O cacau da dona Nena faz-se no quintal
Dona Prazeres é baixinha, magrinha e um poço de simpatia. Não
tínhamos ido até à ilha de Combu por causa dela, mas foi ela a primeira
pessoa que encontrámos. Recebeu-nos no seu restaurante sobre estacas, o
Saldosa Maloca, com o rio a passar ali ao lado, e ofereceu-nos um sumo
misterioso, deixando-nos a adivinhar de que seria. Nem os nossos guias,
Adriana e Cleber, vindos do outro lado do rio, de Belém, no barquinho
que não demora nem 15 minutos a chegar aqui, conseguiram adivinhar.
“Vocês lá em Belém não sabem o que tem aqui”, riu-se dona Prazeres.
Trouxe inhame frito e pirarucu para petiscarmos, depois encheu-nos de
repelente e convidou-nos a passear por entre as árvores enormes que
rodeiam o restaurante. “Esta é uma samaomeira, os índios chamam-lhe a
árvore-mãe”, diz, indicando uma árvore gigante. “Batiam na raiz para
entrar em contacto com as outras tribos.” Mostra-nos o buriti ou miriti,
usado para fazer os bonecos levíssimos do artesanato local, a
andirobeira, cujo óleo é usado como anti-inflamatório, a seringueira, de
onde é tirada a borracha que no passado foi a riqueza do Pará, o
jenipapo do qual os índios extraem uma tinta que usam para pintar o
corpo.
Prazeres cresceu aqui no meio destas árvores e sabe tudo sobre elas.
Passou a infância no Combu, quando vivia na ilha tão pouca gente que
“quando se ouvia o ruído de um barco sabia-se logo quem era”. Dava para
ouvir o estalar do ouriço da seringueira, que assim, quebrando-se ao
sol, espalha as suas sementes. Mas a ilha cresceu e hoje vivem no Combu,
nas casas sobre estacas a que só se chega de barco, mais de 1800
pessoas.
A samaomeira que nos faz sentir anões está comprometida por causa da
erosão provocada pelo rio — o próprio restaurante, construído em 1982,
ficava nessa altura dentro da floresta e hoje está dentro do rio. Dona
Prazeres tira um fruto do cacau, bate com ele na árvore e mostra o
interior, uma espécie de dentes brancos, os grãos cobertos por uma polpa
fina. É delicioso. E é, afinal, daí que é retirado o sumo que nos
ofereceu à chegada: suco de cacau.
Lembra-se de quando era pequena ir de barco com o irmão ao longo da
ilha para recolher o cacau que os pais, que iam pela floresta,
apanhavam. Tudo começou com o avô, que veio de Portugal para Belém,
voltou para “ir buscar a avó à Granja” e instalou-se definitivamente
aqui abrindo uma fábrica de gelo. Mais tarde comprou uma ilha e
dedicou-se ao cacau.
Foi o cacau que nos trouxe até aqui. Não o suco, que nem sabíamos que
existia, mas o chocolate orgânico (na verdade 100% cacau) da dona Nena,
tia de Prazeres, e a mulher que recuperou o trabalho do cacau que a
família praticamente abandonara. Para chegarmos a casa desta mulher de
cabelos negros e rosto simpático temos que ir de barco. Fica a menos de
cinco minutos da Saldosa Maloca.
Cacau na folha
A casa de dona Nena é também a sua “fábrica” de cacau orgânico. “A
nossa família sempre produziu cacau, mas só para os amigos que nos
vinham visitar. Tem um padrão de fermentação e de secagem que é bem da
família, tudo muito rústico.” Mas dona Nena estava com problemas em
trabalhar o chocolate e resolveu pedir a opinião de um chef que conhecia a Prazeres do Saldosa Maloca: Thiago Castanho. “Ele veio cá e disse ‘por favor, não muda o seu chocolate’”.
Hoje o cacau orgânico do Combu, que dona Nena vende na feira orgânica
em Belém, faz parte das sobremesas do Remanso do Bosque, o restaurante
dos irmãos Castanho, e vai ganhando fama. Ela mostra-nos como o faz.
Mais simples não podia ser. Os cacaueiros ficam por detrás da casa. É só
apanhar os frutos, tirar os grãos, deixá-los fermentar, secá-los (há
alguns a secar no interior da casa), torrá-los e, por fim, moê-los. A
máquina é básica, dona Nena vai buscá-la para a afixar à mesa e
mostrar-nos como mói o cacau, enquanto discute com um vizinho a melhor
forma de adaptar a máquina para a tornar mais eficaz.
Já chove sobre o pátio palafita da casa de dona Nena. Chove sobre o
rio de água castanha. A floresta parece ainda mais verde, o cão corre de
um lado para o outro, agitado com a chuva. Continua a fazer calor. Dona
Nena, de calções brancos, camisola vermelha, cabelo muito negro, vai
moendo devagar os grãos de cacau. Do outro lado sai uma pasta castanha
escura, brilhante. Ela junta uma quantidade e embrulha numa folha de
bananeira. É assim que vende o seu cacau na feira. O cão sossega. A
chuva já vai parar.
A Paris na selva (e outras maravilhas de Belém)
Era o tempo em que os habitantes de Belém se cumprimentavam com um Vive la France!.
No final do século XIX, início do XX, a cidade brasileira no meio da
Amazónia vivia a euforia do Ciclo da Borracha, a Belle Époque, o seu
porto explodia de actividade, e os seus políticos sonhavam transformá-la
na Petit Paris – ou, como era chamada, a Paris n’América.
Enquanto muito do Brasil ainda vivia na pobreza e no atraso, Belém
(tal como a sua eterna rival, Manaus) resplandecia, com a chamada
“estética higienizadora”. Não só já tinha luz eléctrica, água canalizada
e esgotos, como tinha carros eléctricos e avenidas largas, e um
magnífico teatro, o Theatro da Paz, frequentado pela elite fascinada por
Paris.
Por detrás desta profunda transformação sofrida por Belém estava o
intendente António Lemos (que governou a cidade entre 1897 e 1911), uma
figura visionária e que ainda hoje marca a história da cidade. Nas novas
avenidas e boulevards, Lemos mandou plantar centenas de
mangueiras, que levaram os paraenses a brincar, dizendo que era preciso
usar chapéus-de-chuva para se protegerem não da chuva que cai todos os
dias à mesma hora, mas das mangas que caíam das árvores.
Apesar da riqueza da borracha se ter desvanecido, é possível
encontrar ainda hoje em Belém muita da herança dessa “Paris na selva”.
Um dos locais a não perder é o Museu Paraense Emílio Goeldi.
Museu Paraense Emílio Goeldi – Aos fins-de-semana,
as famílias brasileiras (as meninas com os melhores vestidos e os
cabelos cheios de trancinhas elaboradas, os rapazes a amachucarem a
roupa de domingo) fazem fila para vir ao museu ver a preguiça pendurada
na árvore, os macacos, as araras, o mutum, a cutia, o tucano, a ariranha
e muitos outros animais e plantas exóticas (entre as quais o lago das
magníficas vitórias-régias). O Museu Goeldi, fundado no final do século
XIX, na altura das expedições naturalistas, é a mais importante
instituição de pesquisa científica sobre a Amazónia brasileira.
Mangal das Garças – Outro passeio imperdível para
quem visita Belém, o Mangal das Garças, na margem do rio Guamá, foi
inaugurado em 2005. Inclui um borboletário, um orquidário, um viveiro de
pássaros (os guarás, com o seu cor-de-laranja vivo, são lindos), um
viveiro de plantas, um Museu da Navegação e uma torre-mirante de onde se
pode ver a cidade de Belém e a paisagem nas margens do rio.
Basílica da Nazaré – Erguida em 1852, no lugar onde o
caboclo Plácido encontrou uma imagem da Nossa Senhora, alberga essa
imagem, que sai em procissão durante o Círio da Nazaré, a mais
importante festa religiosa da cidade, em Outubro. Mas em qualquer
domingo normal a missa na Basílica está cheia de devotos paraenses, num
ambiente alegre.
Theatro da Paz – Construído com o dinheiro da
borracha, e inaugurado em 1878, o edifício neoclássico é o maior símbolo
da Paris n’América do final do século XIX, e competiu sempre com a
Ópera de Manaus, recebendo na época as mais famosas companhias líricas
do mundo. Hoje continua a ter uma programação musical, incluindo um
festival de ópera, e a poder ser visitado.
Complexo Feliz Lusitânia – Foi este o nome que os
colonizadores portugueses deram ao núcleo inicial da cidade de Belém. É
aí que fica o Forte do Presépio, construído em 1616, o Palacete das Onze
Janelas, de Domingos da Costa Bacelar, dono de um engenho de açúcar, o
Museu de Arte Sacra instalado no convento dos jesuítas e a Catedral da
Sé. Do muro do Forte pode ver-se a feira do açaí, onde todas as
madrugadas o açaí vindo das zonas ribeirinhas do interior é
descarregado.
GUIA
Como ir
A partir de 3 de Junho a TAP voa para a Amazónia, realizando três voos
semanais (às terças, sextas e domingos). O voo para Manaus terá a
duração de 9h10, a que se somam 3h para Belém do Pará: sai às 9h30 de
Lisboa, chega às 13h40 a Manaus, de onde sairá às 14h40 para aterrar às
17h40 em Belém. Com destino a Portugal: sai às 19h10 de Belém e chega às
6h45 a Lisboa (7h20 de voo).
Quando ir
No Pará há duas estações: a da seca, de Abril a Outubro (em que chove
menos), e a chuvosa, de Novembro a Março. Em Belém, chove todos os dias
uns 20 minutos, geralmente a meio da tarde, mas o clima é quente e
húmido. Os paraenses aconselham a visita na altura da festa do Círio de
Nazaré, que começa no segundo sábado de Outubro, e dura 15 dias.
Atenção: a vacina contra a febre-amarela (que é válida por dez anos) é
obrigatória para esta região.
Onde ficar
Em Belém, uma boa opção, com óptima localização, é o Hotel Hilton, que
fica no centro da cidade, na Avenida Presidente Vargas, em frente da
Praça da República e do Theatro da Paz. Preço da diária: a partir dos 80
euros.
Onde comer
O melhor restaurante da cidade é o Remanso do Bosque (Travessa
Perebebuí, em frente ao Bosque Rodrigues Alves), dos irmãos Felipe e
Thiago Castanho (pode também ir conhecer a outra casa da família
Castanho, o Remanso do Peixe, na Travessa Barão do Triunfo). Para o
tradicional açaí com peixe feito, o Point Açaí (Rua Veiga Cabral, 450) é
o sítio certo. Para uma visão geral da cozinha paraense, o ideal é
começar pelo buffet do Lá Em Casa, (na Estação das Docas) e noutro dia ir conhecer o do Manjar das Garças (no Mangal das Garças).
Cf.:
VÍDEO | FOTOS 1 | FOTOS 2
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A Fugas esteve em Belém a convite da Paratur
via Fugas
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