REPORTAGEM
Guaranis-caiovás vivem em confinamento em MS
por Daniel Carvalho
As irmãs guarani-caiová Maricleide (esq.) e Marineide Cavanha em acampamento improvisado ao lado da BR-463, a 15 km de Dourados (MS), onde vivem. foto: Eduardo Knapp |
"A tristeza nossa não é barata. A tristeza nossa é cara." O desabafo do cacique Getúlio Juca, 60, da aldeia Jaguapiru, em Dourados, resume o drama vivido pelos 43 mil índios da etnia guarani-caiová, na região do cone sul do Estado de Mato Grosso do Sul, próximo à fronteira com o Paraguai.
A segunda maior população indígena do país, segundo dados do IBGE, vive espremida em reservas ou em acampamentos improvisados em fazendas e às margens de rodovias.
Eles dizem querer voltar para o local de onde foram expulsos, seus "tekohás", terras sagradas onde afirmam que seus antepassados viveram e hoje estão enterrados.
Mas a terra agora está nas mãos dos fazendeiros, que produzem soja, cana, milho e gado em áreas adquiridas do governo federal desde o fim da Guerra do Paraguai (1864-70), quando o Império começou a colonizar a região.
A partir da década de 1950, a expulsão dos índios e a concessão de títulos de propriedade a fazendeiros se intensificou. Nativos eram retirados das terras pelo SPI (Serviço de Proteção ao Índio) --órgão federal que mais tarde daria lugar à Funai (Fundação Nacional do Índio)-- e levados para reservas.
Os índios relatam ataques e enfrentam disputas judiciais. Aqueles que não resistem ao clima tenso ajudam a colocar o Estado no topo do ranking de suicídios. Também há registro de homicídios em enfrentamentos relacionados à luta pela terra.
A maioria dos guaranis-caiovás vive em terras indígenas: segundo a Funai, eles têm hoje 15 territórios regularizados, que ocupam uma área de 20 mil campos de futebol. O primeiro é de 1915.
Mesmo nas terras oficialmente indígenas, como a Reserva de Dourados (a 229 km de Campo Grande), os guaranis-caiovás vivem em situação de confinamento, que a Folha testemunhou no fim de outubro durante viagem de uma semana pela região.
Em Dourados, num espaço de 3.470 hectares, cortados pela rodovia MS-156, vivem 14 mil índios.
É como se quatro índios fossem obrigados a viver, plantar e rezar no espaço de um campo de futebol.
De acordo com a antropóloga Lucia Helena Rangel, o espaço é pequeno se levado em conta que eles sobrevivem da agricultura. "Assentamentos de reforma agrária na região Sul chegam a ter 50 hectares por família", compara.
A vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat, já definiu a reserva como "a maior tragédia conhecida na questão indígena em todo o mundo".
"Estamos vivendo com muitas comunidades, tudo espremido aqui na aldeia. A terra está muito pouca para nós. Se a gente for colocar certo as coisas, não dá meio hectare para cada um", disse o cacique Getúlio Juca.
Na reserva, há casas de alvenaria e as tradicionais moradias de sapê. É possível ver mercearias e igrejas evangélicas pela área. "Em cinco, dez anos, não vamos mais ter espaço para viver, para plantar", disse o índio.
Chorando, Alda Silva, 66, mulher do cacique, interrompe a entrevista: "Morremos e derramamos sangue por causa da nossa terra e não vemos resultado. Perdemos nossa família. Nós queremos só a nossa terra. Não queremos a fazenda do fazendeiro."
MORTE
Levantamento do Ministério da Saúde mostra que, de 2000 a 2011, 555 índios se suicidaram, em geral por enforcamento. Só neste ano, até julho, 32 casos foram confirmados pela pasta. Praticamente todos eram da etnia guarani-caiová.
Enquanto na média nacional a taxa de suicídio em 2007 foi de 4,7 por 100 mil habitantes, nas áreas indígenas do sul de Mato Grosso do Sul, chegou a 65,68 por 100 mil.
Em média, um índio se suicida a cada seis dias no Estado. A maioria é do sexo masculino e tem entre 15 e 29 anos.
Os índios consideram o suicídio previsível: dizem que o céu fica vermelho quando alguém vai tirar a própria vida. "A doença fica no corpo durante sete dias. Ela procura os mais jovens. [O suicida] quer gritar, fica com raiva. Aqui já teve muito suicídio", afirma o cacique Getúlio.
Em Iguatemi, no extremo sul do Estado, Marilene Benites Romeiro, 23, disse que já pensou em acabar com a própria vida. "Da minha parte, tenho vontade de desistir. Às vezes tenho vontade de me matar. O que me segura são meus filhos".
Marilene contou que cinco dias antes havia sido atacada por pistoleiros enquanto caminhava na estrada, em direção ao centro da cidade. A Polícia Civil investiga o caso.
Agora ela usa uma espécie de tchaco (corrente com uma haste usada em artes marciais) a tiracolo. Além disso, dois jovens da aldeia passaram a escoltá-la.
A índia diz que tragédia na vida dela não é novidade. No ano passado, afirma, seu irmão foi degolado e teve os olhos perfurados. A Delegacia de Iguatemi informou desconhecer o caso.
Relatório do Ministério da Saúde publicado em abril considera "inquietantes" os números de violência.
Nos últimos dez anos, foram 317 homicídios, alguns cometidos pelos próprios índios. Em 70% dos casos, foram usadas armas brancas. Em 2007, enquanto a taxa de homicídios no Brasil era de 25,5 por 100 mil habitantes, nas áreas indígenas de MS esse índice chegou a 67,37.
A proteção dos índios fica a cargo da Polícia Federal e da Força Nacional de Segurança Pública. Procurado pela Folha, o Ministério da Justiça não divulgou o efetivo que está na área.
PARA O MUNDO
Foi a localidade de Pyelito Kue --mistura de português, espanhol e guarani que significa algo como "o lugar onde ficava o pequeno povoado"-- a responsável por expor para o mundo, em outubro, o drama dos guaranis-caiovás.
No texto divulgado pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e reproduzido massivamente nas redes sociais, os índios afirmaram que resistiriam até a morte à tentativa de desocupação do local em que vivem há um ano, numa área de dois hectares na fazenda Cambará, em Iguatemi, extremo sul do Estado.
"Pedimos ao Governo e [à] Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos para decretar a nossa morte coletiva", diz a carta interpretada equivocadamente por ativistas como um anúncio de suicídio coletivo.
Em janeiro, o proprietário da fazenda pediu a remoção dos índios à Justiça Federal em Naviraí (MS), que acatou o pedido em setembro.
Em meio à repercussão do caso, o TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região), em São Paulo, garantiu a permanência dos índios.
A discussão, porém, está longe do fim. O caso deve parar no STF (Supremo Tribunal Federal), onde esse tipo de questão costuma demorar para ser resolvida.
A Folha não conseguiu falar com o dono da fazenda.
O acesso ao acampamento é difícil. Primeiro é preciso percorrer de carro as estradas de terra da reserva Sassoró. Depois, caminha-se por cerca de um quilômetro numa trilha aberta pelos índios, até chegar a uma das margens do rio Jogui (ou Hovy).
Para atravessar o rio, que tem cerca de dois metros de profundidade e 100 metros de largura, é preciso ir por dentro d'água, tendo como apoio um fio de arame estendido de uma margem à outra, para vencer a correnteza. Próximo à margem, crianças brincam na água.
A reportagem encontrou poucos adultos em Pyelito Kue. Ademir Riquelme Lopes, 22, se apresenta como "escrivão indígena" e diz que foi o responsável pela carta que fez ecoar o lamento dos 170 acampados.
"A gente está numa guerra. Estamos prontos para enfrentar o que vier. A gente sabe como foi nosso passado e precisamos recuperá-lo. Tem que reconhecer o que é nosso. [Na terra], a gente planta, a gente caça, dela a gente tira as plantas medicinais, nela a gente se diverte, nela a gente vive. A terra é sagrada", afirma Ademir.
Ele disse que a interpretação equivocada da carta que tomou conta das redes sociais acabou sendo positiva para eles, mas deixa claro: "Jamais a gente vai pensar [em suicídio]. Se os pistoleiros ou outros órgãos [polícia e Justiça] vierem nos atacar, vão ter que nos matar aqui, porque os nossos antepassados morreram aqui".
Os acampamentos visitados pela Folha são simples e quentes, mas limpos. Há poucas ocas e a maioria das moradias improvisadas são tendas de lona preta, semelhantes às dos acampamentos de militantes sem-terra pelo país.
Em Pyelito Kue, os barracos ocupam uma clareira no meio da mata.
INSEGURANÇA
Os índios da localidade simbolizam a insegurança jurídica em que vive a maioria dos guaranis-caiovás e muitos produtores rurais.
A Famasul (Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Mato Grosso do Sul) calcula que hoje existam 70 propriedades ocupadas por índios em Mato Grosso do Sul.
Em Rio Brilhante (165 km de Campo Grande), a Justiça garante a existência da aldeia Laranjeira Nhanderu. O cacique local, "Direito Humano" Faride Mariano de Lima, 53, adotou a alcunha após receber homenagem de uma rede ONGs e movimentos sociais.
Os cerca de 150 índios que Faride diz viverem lá estão na terra há dois anos. Antes de conseguirem certa estabilidade, moraram em tendas na beira de uma estrada. O cacique diz que a tribo foi alvo de tiros e chegou a ter os barracos incendiados.
A permanência deles na área de reserva legal da propriedade é garantida por ordem judicial até que a perícia antropológica seja concluída. Enquanto isso, eles dependem da ajuda da Funai, que a cada quinze dias manda 88 cestas de alimentos, duas para cada família.
No espaço em que estão, convivem com cobras, aranhas, escorpiões, mosquitos e um calor que geralmente passa dos 40ºC.
Situação mais tensa é a das 70 famílias de Passo Piraju, no município de Dourados. Segundo o Ministério Público Federal, os índios estão numa área de 40 hectares na área da fazenda Campo Belo há oito anos. Mas há um mês foi expedida uma ordem de reintegração de posse.
Ali há energia elétrica, antena parabólica, escola e posto de saúde. O líder Carlito de Oliveira, 76, só lamenta. "Estou amarrado pelo pescoço".
Carlito se diz vítima constante de atentados de pistoleiros e afirma que não vai reagir à decisão judicial. "Nós não vamos brigar. Vamos nos ajoelhar e dizer 'mata todos nós' e acabou".
NA BEIRA DA ESTRADA
Se a vida nos acampamentos já parece incerta, mais dramática é a situação das 14 famílias que vivem desde 2009 no KM 15 da BR-463, que liga Dourados a Ponta Porã, na fronteira com o Paraguai.
Uma bandeira do Brasil tremula num mastro improvisado. As lonas pretas transformam os barracos em fornos. O acampamento Apika'y, na região conhecida como Curral do Arame, a cerca de 10 km do centro de Dourados, fica em posição estratégica. Do outro lado da rodovia está o que dizem ser o"tekohá" deles, coberto por uma plantação de cana.
Quem manda no acampamento é a cacique Damiana Cavanha, 73.
Assumiu a liderança depois de ter perdido o marido e três filhos atropelados.
Perto do cemitério indígena localizado nas terras da fazenda Serrana há um pequeno riacho. A água serve para beber, tomar banho e lavar roupa. O problema é que, quando chove, o agrotóxico usado na lavoura escorre todo para a água, dizem os índios.
LONGA ESPERA
Sem opção, os índios aguardam. A Funai firmou um CAC (Compromisso de Ajustamento de Conduta) com o Ministério Público em 2007, comprometendo-se a demarcar terras em Mato Grosso do Sul até 2010. O prazo expirou e nada foi feito. Segundo a Funai, fazendeiros entraram na Justiça impedindo o andamento dos processos demarcatórios.
Em 2008 começaram os estudos antropológicos de Pyelito Kue. Agora, sob pressão social, a Funai diz que esses estudos serão concluídos até o início de dezembro.
AGRONEGÓCIO
Do outro lado, os fazendeiros também esperam e acusam os índios de terem invadido suas terras.
"São propriedades com toda a documentação. São títulos do governo federal", diz o presidente do Sindicato Rural de Dourados, Marisvaldo Zeuli.
O presidente diz que a convivência com os índios era pacífica até o início da atividade de ONGs na região. A Famasul corrobora a afirmação e diz ainda que essas organizações fabricam "factoides".
Segundo Zeuli, elas vieram para "atrapalhar o agronegócio" na região.
"Se existe um débito com a questão indígena, não é só o produtor rural que tem que pagar", afirma.
Para a Famasul, a demarcação das 39 terras indígenas relacionadas no CAC assinado pela Funai prejudicará 26 municípios, "comprometendo as terras mais férteis de Mato Grosso do Sul".
Segundo a federação, o Estado ocupa o quinto lugar nos rankings nacionais de produção de soja, milho e cana de açúcar e tem o quarto maior rebanho do País.
"A vítima da violência nessa situação é o produtor rural que sofreu a invasão de terra. O Judiciário é o caminho correto para questionar. Fazer justiça com as próprias mãos não é permitido numa sociedade como a nossa", afirmou o assessor jurídico da Famasul, Carlo Daniel Coldibelli.
O Sindicado Rural de Dourados defende que o governo federal pague pelas terras o valor de mercado.
Mas a Constituição diz que a União não pode comprar terras de ocupação tradicional de povos indígenas. Segundo a legislação, os títulos incidentes nas terras indígenas são nulos e só cabe indenização pelas benfeitorias.
O procurador da República em Mato Grosso do Sul, Marco Antonio Delfino de Almeida, defende que a União indenize os proprietários de terras que têm títulos de propriedade expedidos pelo próprio governo federal.
Já a Funai diz ser favorável à efetivação do Fundo Estadual de Terras Indígenas criado para captar recursos e indenizar os produtores "atingidos" por demarcações de terras.
O governador André Puccinelli (PMDB) não quis se manifestar sobre a questão indígena por entender que o tema diz respeito à União.
Vídeos relacionados: - Índios guaranis-kaiowás desmentem suicídio coletivo no MS - 02/11/2012
- Comissão do Senado visitará índios guarani-kaiowá - 06/11/2012
- MPF recorre contra retirada de índios de fazenda em MS - 26/10/2012
- Novo Maracanã ameaça índios que vivem ao lado da obra - 17/06/2012
Sem comentários
Enviar um comentário