antropólogo Márcio Meira, fotografado por Marcello Casal Jr |
Tive a sorte de crescer, repórter-menino em Bauru, frequentando a TI Araribá, dos Terena, Kaingang e Guarani, onde então trabalhava um dos irmãos Villas Boas, Álvaro, frequentemente visitado por Orlando e Cláudio. Bauru é marco zero da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, que liga a cidade a Corumbá, em Mato Grosso. Dá para imaginar quantos indígenas foram mortos na “conquista do Oeste” brasileiro?
Muito mais tarde me assustei, já como correspondente nos Estados Unidos, com a riqueza e a miséria dos grandes territórios indígenas do Oeste, especialmente numa viagem de automóvel que fiz de Phoenix, no Arizona, a Salt Lake City, Utah. O curioso é que coisas que ouvi lá, faz tempo, frequentemente continuo a ouvir aqui em relação aos indígenas. Ouvir e ler.
Num texto que caberia numa ação de lobby da Norte Energia, a empresa que constrói Belo Monte, o jornal Valor Econômico se assustou com a lista de reivindicações dos indígenas (pobre Norte Energia, né mesmo!) e acrescentou uma frase que resume um misto de condescendência e indignação editorial.
Agora, segundo o jornal, está na hora de os indígenas desistirem das reivindicações e “passar a cuidar de suas roças de milho e mandioca, da pesca, das crenças e do artesanato”.
Acompanhem o trecho do texto:
Mas, pera aí: os Navajo, os Sioux e os Cheyenne podem comprar tratores, cobrar por visitas a seus santuários ecológicos, defender seus direitos e cuidar de suas terras nos Estados Unidos como bem quiserem, mas os indígenas brasileiros, não?
Não podem negociar compensações, como a instalação de torres de telefonia celular?
Quer dizer que a Joênia Wapixana, que defendeu brilhantemente os indígenas da Raposa Terra do Sol no Supremo Tribunal Federal, não pode se formar advogada a não ser que cultive uma roça de milho?
Foi este o tema do início de minha entrevista com o antropólogo Márcio Meira, ex-presidente da Funai, quando tratamos de questões relevantes para os indígenas brasileiros, hoje.
Como foi uma longa entrevista, vamos apresentá-la em partes:
Na segunda parte, Márcio Meira propõe uma solução para a crise entre os Guarani Kaiowá e os fazendeiros em Mato Grosso do Sul e diz que os indígenas foram vítimas de “terrorismo informativo” no estado:
Na terceira parte, Márcio Meira fala de outra situação dramática: a dos Xavante de Marãiwatsédé
“Terrorismo” informativo foi usado contra Guarani Kaiowá em MS, diz antropólogo
O antropólogo Márcio Meira diz que “terrorismo” informativo foi usado contra os Guarani Kaiowá durante os levantamentos determinados pela Funai para identificar territórios indígenas em Mato Grosso do Sul.
As informações, falsas, davam conta que todo o estado seria identificado como pertencente aos indígenas.
Foi apenas mais um lance na longa disputa por terras entre fazendeiros e os Guarani.
Segundo o ex-presidente da Funai, é uma história antiga, que se agravou quando o então presidente da República, Getúlio Vargas, incentivou a “marcha para o Oeste”. Ao então Serviço de Proteção ao Índio, SPI, antecessor da Funai, coube a tarefa de confinar os indígenas em pequenas áreas.
Era a origem do problema que se estende até os dias de hoje: cerca de 45 mil Guarani Kaiowá ocupam pequenas porções de terra. No total, em áreas já reconhecidas pela União como pertencentes a eles — nem todas ainda ocupadas — são 50 mil hectares.
Em 2007, num termo de Ajustamento de Conduta firmado com o Ministério Público Federal e representantes dos indígenas, a Funai formou 6 grupos de trabalho encarregados de fazer relatórios de identificação de terras indígenas. Mas apenas um relatório foi concluído. As equipes foram impedidas de trabalhar por fazendeiros, ameaçadas por pistoleiros ou foram congeladas por ações judiciais.
Como muitos dos fazendeiros em áreas em litígio receberam títulos do estado de Mato Grosso ou da União, Márcio defende que recebam indenização por benfeitorias e também por danos morais ou lucros cessantes. Os que simplesmente invadiram territórios indígenas, segundo ele, não teriam o mesmo direito.
O ex-presidente da Funai acredita ser necessário um pacto entre os indígenas, proprietários titulados, o governo federal, o de Mato Grosso do Sul e a Justiça para por fim às situações de conflito.
Ele também acha necessário que o Supremo Tribunal Federal esclareça sua posição sobre as condicionantes impostas durante o julgamento do caso da reserva Raposa-Serra do Sol, em Roraima, que redundaram em uma portaria da Advocacia Geral da União, a 303, que estenderia as condicionantes a todas as terras indígenas. A portaria foi suspensa pela própria AGU, sob pressão dos indígenas e de entidades da sociedade civil. Ela deu margem, no entanto, a ações judiciais que tornaram ainda mais confusa a disputa em Mato Grosso do Sul.
Para Márcio Meira, o Brasil pode enfrentar “um vexame do Direito internacional” se não atender à Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), um tratado internacional do qual o país é signatário e que garante uma série de direitos aos indígenas, hoje violados especialmente no caso dos Guarani Kaiowá.
Clique abaixo para ouvir a segunda parte da entrevista:
A primeira parte, aqui:
Crianças Xavante de Marãiwatsédé |
O antropólogo Márcio Meira, ex-presidente da Funai, atribui à militância digital o fato de que um grande número de brasileiros ficou conhecendo mais de perto e passou a se preocupar com a situação dramática dos Guarani Kaiowá em Mato Grosso do Sul.
Porém, ele diz que uma situação tão dramática quanto a dos Guarani é a dos Xavante de Marãiwatsédé, em Mato Grosso, que vivem em terra homologada como indígena mas que foi invadida e desmatada por latifundiários.
A CartaCapital fez uma das raras reportagens sobre o conflito.
Trechos:
A disputa por este território expõe a dificuldade do governo em controlar os conflitos fundiários na Amazônia. Os pequenos posseiros, tradicionais inimigos dos índios na região, deram lugares aos grandes ruralistas – que se negam a deixar o território. A pressão externa tem provocado divisões internas dos Xavantes, que colocam em risco a vida das principais lideranças. “Nós vamos conseguir, tenho certeza”, diz o advogado dos fazendeiros, Luiz Alfredo Abreu, irmão da senadora Kátia Abreu (PSD-TO), uma das principais líderes dos agropecuaristas no Congresso Nacional. “Eu não tenho medo. Eu quero a terra. Eu morro pela terra”, rebate o cacique Damião Paridzané.
A diáspora de Marãiwatsédé é decorrente da expulsão dos índios da região em 1966, e um dos problemas mais constrangedores do indigenismo no Brasil. Os Xavante foram levados em aviões da FAB para um outro território Xavante localizado 400 quilômetros ao sul, um aldeamento organizado por uma missão católica. Nos primeiros quinze dias, uma epidemia de sarampo matou 150 índios, e os sobreviventes fugiram para outras áreas Xavante, vivendo em uma espécie de exílio interno no País.
Após ser adquirido por uma empresa colonizadora paulista, de Ariosto da Riva, o território Marãiwatsédé passou para as mãos do Grupo Ometto e se transformou no latifúndio Suiá-Missu, com 1,8 milhão de hectares. Depois foi adquirido pela Liquigás e, em seguida, passou para as mãos da empresa italiana Agip Petrolli.
Nessa sucessão jurídica de posse, o esbulho dos Xavante passou em silêncio. Foi na Eco-92 que a situação mudou. O encontro internacional serviu para dar visibilidade, e a Agip foi constrangida, na Itália, por seus atos contrários aos direitos indígenas no Brasil. A sede da empresa decidiu devolver as terras aos índios, mas, no Brasil, o latifúndio foi invadido. Os posseiros e os fazendeiros que hoje ocupam ilegalmente a área chegaram durante esse período.
Márcio Meira destaca os vários avanços realizados pelo Brasil no reconhecimento dos direitos dos indígenas desde a Constituição de 1988. Lembra que o país é reconhecido internacionalmente pela sua política de proteção dos indígenas isolados.
Destaca que o Brasil tem uma Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas, criado pelo governo Dilma.
Não é, portanto, um pessimista. Cita o último Censo, que apontou novo aumento no número de indígenas brasileiros, cerca de 900 mil.
Isso tudo convive com situações dramáticas, como a dos Guarani em Mato Grosso do Sul e a dos Xavante em Mato Grosso.
Na entrevista, o ex-presidente da Funai também comentou um artigo e uma carta de leitor publicados no jornal O Estado de S. Paulo (segundo Márcio, representativos “da ultradireita”). No artigo, Insensatez, o autor se refere à decisão da Advocacia Geral da União de suspender os efeitos de uma portaria, a 303, considerada prejudicial aos indígenas.
“Forças conservadoras, especialmente ligadas ao agronegócio, não conseguem compreender que o Brasil não pode conviver com esse tipo de situação”, afirmou o ex-presidente da Funai quanto aos casos dos Guarani e dos Xavante e de outras violações dos direitos indígenas.
Num trecho de entrevista publicado anteriormente, Márcio tinha feito referência a uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo sobre a percepção que a população em geral tem dos indígenas, que revelou alguns dados perturbadores, como este:
Uma visão mais extrema e exterminadora sobre os indígenas é observado em uma pequena parcela da população brasileira, 3% concorda totalmente que “índio bom é índio morto” e 2% concorda parcialmente com esta afirmação.
É opinião minoritária, mas a ignorância sobre a importância cultural dos indígenas talvez não seja.
Contei ao ex-presidente da Funai uma experiência que tive quando gravava um documentário numa escola da TI Raposa-Serra do Sol, em Roraima, em 2008, antes da decisão do STF que confirmou a demarcação em área contínua. Foi um dos momentos mais marcantes em meus 40 anos como repórter.
Era numa escola que recebia a visita de jovens estudantes de distintas etnias. Cada um falava seu próprio idioma. Tinham em comum o português ou improvisavam uma espécie de língua franca. Fiquei ouvindo a conversa dos adolescentes e achei aquilo lindo: além da música criada pelo som das palavras — só algumas das quais eu conseguia entender (quando encaixavam uma ou mais palavras em português) — caiu a ficha de forma concreta sobre a imensa riqueza cultural representada pela cena.
Márcio, depois de lembrar que existem 300 línguas indígenas no Brasil, muitas delas ameaçadas, concluiu: “Cada língua dessa aí há um conhecimento por trás dela. Do meio ambiente, da floresta, dos recursos naturais, da estética”.
E mais: “Essas pessoas que tem esse preconceito não conseguem se olhar no espelho. Se olhassem no espelho de verdade, com honestidade, iam ver os índios lá, no espelho, na sua cara, nos seus costumes”.
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O terceiro trecho da entrevista começa com a situação dramática dos Guarani Kaiowá em Mato Grosso do Sul:
O segundo trecho está aqui:
O primeiro trecho está aqui:
Para assistir a todo o documentário, que foi finalista do Prêmio Esso de Telejornalismo, clique aqui.
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