Além de vigiar a fronteira, Exército abre novos caminhos no meio da mata
Maior felino das Américas, a onça-pintada é o mascote dos militares
A ação humanitária dos militares abrange também serviços de saúde
Braço forte, mão amiga
Nas entranhas da selva amazônica, soldados brasileiros protegem patrimônio natural e ajudam comunidades indígenas e ribeirinhasO TERREMOTO que atingiu o Haiti, em janeiro deste ano, causando a morte de mais de 200 mil pessoas, propiciou que as ações humanitárias do Exército brasileiro em terras estrangeiras ganhassem destaque. A tragédia fez com que os esforços dos militares para minimizar o imenso sofrimento do povo haitiano fossem reconhecidos em todo o mundo. Embora em menor escala, as Forças Armadas do Brasil atuam ainda no Timor Leste, desde 1999, junto às missões de paz da ONU. Apesar de não vivenciarmos guerras ou terremotos, também aqui nosso Exército executa importante ação humanitária, enfrentando ambientes extremamente hostis, como a selva da Amazônia. Nesta reportagem, a jornalista Luciane Ramos, formada pela Unisinos e hoje residindo em Marabá, no Pará, conta um pouco desse trabalho imprescindível realizado por personagens heroicos e solidários.
“Que não ousem ameaçar nossa Amazônia, a aventura pode custar caro demais.” Estampada na entrada do 52º batalhão de Infantaria de Selva, em Marabá, no Pará, a frase resume a presença do Exército brasileiro na região amazônica. Diversas são as riquezas escondidas ou evidentes que estão espalhadas pela misteriosa e exuberante selva. Potentes recursos minerais, biodiversidade e volume de água doce insuperável tornam a área um patrimônio incalculável para o brasil.
Apesar de desconhecida por muitos, a ação desbravadora dos militares brasileiros acontece desde o início do século 17. Atualmente, ela é conduzida pelo Comando Militar da Amazônia. Merece destaque a instalação de unidades de fronteira, que representam a criação de polos de desenvolvimento ao redor dos quais crescem comunidades. Nesses lugares inóspitos, os militares protegem a soberania nacional, ao mesmo tempo em que prestam ajuda humanitária. Em condições adversas e hostis, o lema do Exército – “braço forte e mão amiga” – mostra-se mais verdadeiro do que nunca.
O braço forte do Exército é visto no treinamento de ponta e no preparo exigido dos soldados. Esses aspectos se consolidam nos Pelotões Especiais de Fronteira, unidades militares cheias de particularidades. A vigília constante das fronteiras visa ao controle do tráfi co de drogas, contrabando de armas e garimpo, exploração ilegal de madeira, animais silvestres e outros recursos naturais. A Engenharia Militar de Construção em hidrovias também dá sua contribuição, produzindo aprofundamento de leito, barragens e retifi cação de cursos d’água.
A mão amiga se estende às comunidades ribeirinhas e tribos indígenas, através de assistência médica e odontológica e suprimento de necessidades básicas e educação. Ajuda humanitária em enchentes e desastres naturais também são vertentes do lado social. Outro exemplo é o Projeto Rondon, coordenado pelo Ministério da Defesa, em que universitários do brasil inteiro se unem a militares para praticar ações de agricultura familiar, educação e projetos de saneamento básico em comunidades carentes. O ensino a distância oferecido pelo Colégio Militar de Manaus é uma oportunidade de educação em áreas remotas, muitas vezes conduzida por familiares de militares que guiam as aulas e dão apoio ao aprendizado via internet. A mão amiga também está presente no Exterior, com a ação de maior repercussão na atualidade: a Missão de Paz no Haiti.
Guerreiros de selva
Mundialmente conhecido, o Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS), sediado em Manaus, no Amazonas, é um orgulho para as Forças Armadas. O curso de Operações na Selva (COS) é considerado o melhor do mundo na formação de soldados nesse tipo de ação. A referência internacional faz com que algumas vagas sejam destinadas a militares vindos de outros países.
O major Roberval de Almeida, do 23º Batalhão de Infantaria de Selva, recebeu o distintivo de Guerreiro de Selva em 2004. “Você é levado ao seu limite de resistência física e psicológica, dentro de um lugar hostil como a selva”, conta o militar. Antes do curso, ele considerava impossível uma pessoa ficar sem dormir por cinco dias e noites. “Lá, descobri que não só é possível, mas também que nessa situação ainda somos capazes de planejar estratégias e ações de guerra. Claro que com um pouco mais de dificuldade.”
Durante o curso, ele emagreceu perto de 15 quilos devido afatores como restrição alimentar, esforço físico e calor. Muitos ficavam surpresos ao ver o resultado de alguns hemogramas de alunos do curso, pois era difícil acreditar que o paciente ainda estivesse vivo com taxas tão baixas. “Um combatente da selva sabe utilizar as adversidades e o ambiente hostil como aliados para conduzir qualquer situação real em que seja exigido”, afirma Almeida.
Se na África o rei da selva é o leão, na floresta amazônica quem manda é a onça-pintada. Ela pode pesar até 140 quilos e medir dois metros, sem contar a cauda. Sua beleza hipnotiza e amedronta. Trata-se do maior felino das Américas, com a mordida mais intensa do mundo. Costuma matar sua presa perfurando o crânio da vítima. É de assustar.
Presente no distintivo do Centro de Instrução de Guerra na Selva, a onça-pintada não deixa esquecer as características em comum entre o felino e o combatente formado na região. Os dois têm a selva como aliada para surpreender o inimigo, são excelentes nadadores, camuflam-se com facilidade, se deslocam de maneira silenciosa e têm ação rápida e certeira. Por isso, as onças pintadas são mascotes das unidades. Em desfiles, vem à frente dos soldados, geralmente em cima de uma viatura militar para garantir a segurança de todos.
No 52º Batalhão, em Marabá, a estrela atende pelo nome de Pioneiro, tem três anos e nove meses e se alimenta de carne bovina. O responsável por ela é o soldado Edelvan da Silva Santos. Questionado se tem medo, ele responde: “Tenho, sim, mas não posso demonstrar. O animal selvagem precisa achar que nós temos o domínio total da situação.”
Chuva de beber
Imagine um lugar com acesso apenas fluvial. A viagem até a cidade mais próxima dura quatro ou cinco dias. Água para beber é a da chuva. Comida chega através de aviões da Força Aérea brasileira, uma vez por mês. Racionada, a energia elétrica é fornecida por geradores. Nessa realidade, vivem militares e seus familiares, junto com índios e ribeirinhos, nos Pelotões Especiais de Fronteira (PEF).
Ligadas ao Comando Militar da Amazônia, as 28 organizações militares de fronteira estão localizadas em pontos estratégicos da divisa com outros países. Alguns militares são atraídos pelas vantagens fi nanceiras, uma vez que recebem 20% a mais sobre o salário dos colegas de farda das grandes cidades. Outros veem a experiência como um desafi o profi ssional e pessoal. É o caso do capitão Marcílio Costa Júnior, do 52º batalhão de Infantaria de Selva. Em 2004, quando era primeiro-tenente, ele comandou o 4º Pelotão Especial de Fronteira Estirão do Equador, na divisa com o Peru, distante 30 minutos de voo e cerca de três dias de barco de Tabatinga, no Amazonas. Foi em Estirão também que teve início a vida de casado do militar com a gaúcha Gisele Rodrigues Costa. Três dias após o casamento, o casal pousava em um dos lugares mais isolados do Brasil.
A responsabilidade do Exército em uma vila com 1 km de extensão e menos de 400 habitantes vai bem além da vigília de fronteiras. “A comunidade depende do pelotão para atender às suas necessidades básicas como mantimentos, atendimento médico e dentário. Algumas vezes, fui acordado de madrugada para resolver até questões familiares, desavenças e problemas pessoais dos mais diversos tipos”, lembra Marcílio.
Cabeça de cachorro
Na Amazônia, falar em cabeça de cachorro não é referência a um cão. A expressão é utilizada para designar a cidade de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. O motivo do apelido é o seu formato no mapa do brasil: um cachorro de boca aberta. O município faz fronteira com a Colômbia e a Venezuela, sendo que 95% de sua população é formada por indígenas de diversas tribos: ianomâmis, tucanos e outras. O local é ponto de apoio para turistas rumo ao Pico da Neblina, ponto mais alto do Brasil.
“Posso dizer que viver na Amazônia não é só uma aventura, é um privilégio”, orgulha-se a administradora luciane Delavi, esposa do capitão do Exército Rodrigo Pereira lopes, que está há menos de um mês na cidade. Ela convive com crianças de diferentes tribos, trabalhando como professora de inglês em uma escola. A valorização do educador é algo que a surpreendeu positivamente. “Aqui na Amazônia ainda existe disciplina e respeito na escola”, revela.
Sem trânsito ou violência, a principal difi culdade para quem vive em São Gabriel da Cachoeira é a alimentação. A cidade está a quatro dias de balsa, ou 24 horas em uma lancha rápida, ou então duas horas e meia de avião de Manaus, o que torna a logística para a chegada de mantimentos bem complicada. “O calor e a demora fazem de produtos perecíveis artigos raros por aqui. Iogurte, só em dia de festa!”, conta Luciane.
A reconstrução das almas
As imagens da destruição, após o terremoto que assolou o Haiti em janeiro deste ano, chocaram o mundo. Imagine a tristeza daqueles que trabalharam para construir o que agora é só entulho. “Acredito que a maior difi culdade será devolver aos haitianos a esperança de um futuro melhor, que já havia sido plantada e começava a fl orescer. Se conseguirmos reconstruir as almas, será mais fácil reconstruir as cidades”, desabafa Rodrigo Pereira Lopes, da 21ª Companhia de Engenharia de Construção, em São Gabriel da Cachoeira.
Em 2007, Rodrigo integrou, durante seis meses, a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti. Ele serviu na Companhia de Engenharia Haiti e participou de mais de 100 ações de engenharia das mais diversas naturezas com o objetivo de melhorar as condições de vida do povo haitiano. Contribuiu com fornecimento de água, asfaltamento da avenida que dá acesso à Cité Soleil (favela da capital, Porto Príncipe), “tapa-buraco” em diversas ruas, limpeza de canais e córregos, construção de sistemas de drenagem e reforma de edifi cações - entre elas, a Blue House, onde militares brasileiros perderam a vida durante o terremoto.
via revista Magis
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