Em uma área depredada por queimadas, a Funai encontra o que acredita serem os últimos índios de uma tribo massacrada na década de 80
No ano de desmatamentos e queimadas recordes na Amazônia, a Funai resgatou em agosto dois índios isolados no meio de uma área tomada pela extração ilegal de madeira, na região mais violenta do Brasil. Falantes da língua tupi kawahib, chamados de piripkuras, são os últimos sobreviventes de massacres perpetrados ao longo dos últimos 20 anos. Nunca haviam feito contato tão próximo com sertanistas da fundação. Viviam escondidos, à espreita do movimento de madeireiros, e com freqüência recolhiam os restos deixados pelos brancos: facões, machados, pedaços de pano e espingardas (que não sabiam como usar). Ao contrário do resto de seu povo, os índios, que atendem pelos nomes de Tucan, com cerca de 50 anos, e Mande-I, com mais ou menos 35, conseguiram desenvolver estratégias de sobrevivência extremamente sofisticadas para uma vida sem contato em uma floresta em vias de destruição.
“Olha, o que eu vou dizer para o senhor foi o que eu ditei para escreverem no relatório”, explica Jair Candor. Analfabeto, o filho de seringueiros, assistente dos sertanistas locais, narra um dos maiores feitos das últimas décadas do indigenismo brasileiro. “Só achei eles porque estavam rindo alto e conversando”, diz. Na floresta, não se vê com os olhos, mas com os ouvidos. Os índios estavam distraídos e alegres, por isso foram encontrados. Dois dias antes, Tucan e Mande-I tinham conseguido caçar um porco-do-mato, o vestígio que mais animou Candor na expedição: pedaços de porco assando no moquém em um pequeno “tapiri” (a forma mais elementar de uma aldeia). Pelas marcas na terra, os dois ficaram horas deitados no chão a fazer a digestão do assado. Quando Candor chegou, a fogueira ainda estava acesa.
Segundo o relato oral de Candor, era terça-feira 7 de agosto de 2007. Os dois índios passeavam à beira de um igarapé quando foram encontrados pelos integrantes da Frente de Proteção Etno-Ambiental Madeirinha. O assistente da Funai, escondido atrás de arbustos, desce um pequeno barranco que leva ao igarapé e intercepta o caminho dos indígenas com seu corpo e um assobio. Pronuncia em voz alta e animada a palavra icatu (“bom”, “bom dia”, um cumprimento em tupi). Tucan levanta o machado, encontrado em algum acampamento madeireiro, e faz um gesto ameaçador. Mande-I posiciona-se um passo atrás com um facão à meia altura. Candor permanece parado e sorri. Rita, parente dos isolados (quadro na edição impressa), e o karipuna Aripã, casado com ela e que fala a mesma língua kawahib, ambos integrantes da expedição, gritam palavras que Candor não reconhece. Tucan olha firme para o rosto do funcionário da Funai, abaixa a arma e em seguida também sorri.
Candor dá outra risada e estende os braços. Está sem camisa, para mostrar-se inofensivo. Rita atravessa seu caminho e abraça o índio mais jovem. Eles começam a conversar. Candor diz a Rita para convidá-los a seguir a equipe até o acampamento. “E diga também que eu vou caçar mais um porco para a gente festejar o encontro”, conta. A índia consegue convencer os parentes, que aceitam acompanhar a expedição até o acampamento da Funai, localizado em um retiro da Fazenda Mudança, de propriedade da família Penço, composto de cerca de cinco casas.
Tucan, Mande-I e Rita pertencem à etnia Piripkura, que significa borboleta – um apelido dado por índios da etnia Gavião, inimigos tradicionais. A Funai tem informações escassas a respeito dos piripkuras e torce para que existam mais indivíduos na região. Mas não são pequenas as chances de tratar-se dos últimos remanescentes de um povo massacrado na década de 80. Há muitos relatos de genocídios da tribo. Em toda a Amazônia, aliás, são freqüentes os relatos de extermínio. Em Rondônia, os akuntsu praticamente foram extintos no mesmo período dos ataques sofridos pelos piripkuras.
Tecnicamente, os sertanistas consideram a ação de Candor como um “recontato”. Isso porque, em outras oportunidades, esses índios já haviam sido encontrados na mata. Foram idas e vindas ao longo de anos. A última vez que se teve notícia deles foi em 1997, quando um antropólogo da Funai negou a concessão de uma certidão negativa da presença indígena para uma fazenda de exploração de madeiras. Poucos meses depois, Mande-I bateu na porta de outra fazenda e pediu auxílio, desesperado – estava com diarréia crônica. Foi medicado, a Funai informada de sua presença e logo depois devolvido ao mato. A conclusão a que se chega é que a fundação sabia da existência desses índios desde 1984, mas não deu andamento ao processo de demarcação. Tampouco tentou estabelecer um contato estável para lhes dar assistência. Preferiu deixá-los livres na floresta como sempre viveram, à mercê da ameaça de extermínio pelos grileiros da região.
A Frente Madeirinha foi reaberta em outubro do ano passado. Antes disso, só funcionou efetivamente entre 1988 e 1991. Diante do novo contato, a Funai pretende interditar a área para qualquer tipo de exploração econômica. “Estamos constituindo um grupo de trabalho para fazer a interdição e identificação da área, que é um dever nosso. E protegê-los”, afirmou a CartaCapital o presidente da Funai, Márcio Meira. “É uma área muito delicada e é preciso tomar cuidado, pois, na hora que o grupo chega, é possível que haja um maior movimento de invasores”, afirma.
No dia seguinte ao contato, descobriu-se que Tucan tinha problemas de saúde. Ele urinava “coca-cola”, como descreve a enfermeira Joelina Ribeiro Jorge, que insistiu para que o índio fosse removido do acampamento para um hospital. Mande-I ficou, e depois de alguns dias mais, entediado, decidiu voltar para a vida no mato. Desde então, não fez nenhum novo contato.
Tucan continua em recuperação após ser submetido a uma cirurgia para retirar pedras nos rins e tratar de uma necrose na vesícula. Passa a maior parte do tempo estirado em uma rede em um dos quartos da precária sede da Fundação Nacional da Saúde (Funasa) em Ji-Paraná. Foram necessários 23 pontos para fechar o corte da cirurgia, da barriga ao peito. Em pouco mais de um mês, o índio contraiu catapora e malária. Para lhe fazer companhia, a Funai contratou como intérprete Mauro de Oliveira, que aprendeu a falar kawahib no contato com integrantes da tribo uru-eu-uau-uau no início da década de 80. Oliveira é paciente e atencioso, e nas longas conversas que tem tido com Tucan está conseguindo juntar o quebra-cabeça do extermínio desse povo, história até então desconhecida.
Entre os episódios narrados por Tucan está o do maior ataque sofrido pela etnia. Segundo o relato, um grupo da tribo atravessou o grande rio (provavelmente o rio Roosevelt) em uma canoa cavada no tronco de uma árvore. Do outro lado, um punhado de brancos começou a atirar e vários índios morreram. Os brancos pegaram a canoa e atravessaram até a margem onde estava o grupo de Tucan. De lá, seguiram os rastros até a aldeia. Tucan diz que, no momento, estava em uma árvore a colher mel. Viu tudo de longe, escondido.
Nessa parte da história, o índio senta-se na rede, junta os punhos como se estivesse amarrado e fala agitado. Oliveira traduz: “Amarraram os parentes, cortaram as cabeças, uma a uma, juntaram os corpos e atearam fogo. Ele diz que saiu correndo e, mais tarde, reencontrou Mande-I e alguns outros homens e mulheres que não estão mais com eles”. A narrativa confirma relatos anteriores de Rita. Segundo ela, os sobreviventes retornavam mais tarde às aldeias invadidas para queimar os pertences da tribo e retirar pedaços de carne dos mortos para serem consumidos em rituais de endocanibalismo.
O crime de genocídio denunciado por Tucan ainda não foi investigado. Em setembro, o sertanista Pedro Rodrigues, responsável pela área, sofreu uma emboscada e quase morreu. Rodrigues é ameaçado de morte pelos madeireiros da região, que temem perder terras para os índios. O sertanista conseguiu desviar da armadilha, uma prancha de madeira cravada de pregos para furar o pneu da caminhonete. Mas, em seguida, capotou. Pai de um filho, decidiu pedir demissão. Para a vaga, a Funai vai designar Leonardo Lênin, um jornalista de São Paulo que entrou na fundação por meio de um convênio com a ONG Centro de Trabalho Indigenista (CTI).
“Ele se destacou num curso feito no ano passado, e é o melhor quadro para prepararmos”, afirma o coordenador-geral de Índios Isolados, Elias Bigio. Há 70 quilômetros de onde os piripkuras foram achados, a Funai tenta demarcar a Terra Indígena Kawahiwa do Rio Pardo, na qual vive um grupo de 20 índios isolados. Grande parte da área foi invadida por grileiros. Na região, segundo Bigio, há mais cinco localidades com vestígio de índios, que podem ser kawahib. Mas é preciso ir até lá comprovar. E, no caminho, desviar dos grileiros que não param de chegar à região.
De escrava sexual a expedicionária
A vida de privações de Rita, parente de Tucan e Mande-I
A primeira notícia que se tem de Rita é do ano de 1984. Um piloto de avião fez uma denúncia à Funai de que uma fazenda, chamada Mudança, de propriedade da família Penço, uma das maiores proprietárias de terra da Amazônia, mantinha uma índia vivendo em regime de escravidão. Ela trabalhava na cozinha e servia sexualmente a dezenas de peões do lugar. Nesse tempo, fez tantos abortos que perdeu a fertilidade. Chegou um momento em que a mulher do gerente da fazenda, enciumada, não queria mais a moça por perto e pediu que sumissem com ela – conta-se que sua presença havia provocado brigas e duelos entre os peões. Rita havia machucado o pé e precisava de curativos, que deveriam ser feitos na cidade de Aripuanã. Foi a sua sorte. O piloto fez o transporte e também o serviço de levar a informação à Funai, de forma discreta. Ele já havia demovido o gerente da idéia de matar Rita.
Dois anos antes, Rita havia chegado à fazenda acuada por cães de caça e acompanhada de outro índio da família, um sujeito simpático a quem os peões chamaram de Cumpadre. Um dia, Cumpadre foi colocado em um avião e nunca mais foi visto.
Depreende-se das conversas com Rita que Cumpadre era um líder eminente do povo, o cacique da pequena aldeia, e a acompanhava na jornada em busca de um novo marido. O anterior havia morrido por ter se engasgado com um espinho de peixe. Sem condições de criar os filhos, Rita teve de assistir ao assassinato dos dois por decisão da tribo. O encarregado das mortes teria sido Tucan, contatado mais de 20 anos depois pelo grupo da Funai do qual Rita faz parte. Por isso, conta a índia, há uma animosidade entre eles.
Na cidade, Rita foi viver na Funai local e, posteriormente, sem esperanças de vida, casou-se com Tio Karipuna. Depois da morte de Tio, casou-se com o outro karipuna, Aripã, com quem vive até hoje. Entre um casamento e outro, Rita escondeu-se por seis meses nas matas de um parque da cidade de Porto Velho, na tentativa de reencontrar a vida na floresta. Foi um drama do qual ela não gosta de falar. Com dificuldade de expressar-se em português, e disposta a reencontrar o seu povo, ela tem integrado as expedições de contato da Funai. Hoje, com cerca de 45 anos, espera ter a chance de voltar à terra de onde foi retirada. Antes que seja tarde.
por Felipe Milanez e Araquém Alcântara (fotos), de Colniza (MT)
fonte: Carta Capital - Edição 468
Fotos:
No ano de desmatamentos e queimadas recordes na Amazônia, a Funai resgatou em agosto dois índios isolados no meio de uma área tomada pela extração ilegal de madeira, na região mais violenta do Brasil. Falantes da língua tupi kawahib, chamados de piripkuras, são os últimos sobreviventes de massacres perpetrados ao longo dos últimos 20 anos. Nunca haviam feito contato tão próximo com sertanistas da fundação. Viviam escondidos, à espreita do movimento de madeireiros, e com freqüência recolhiam os restos deixados pelos brancos: facões, machados, pedaços de pano e espingardas (que não sabiam como usar). Ao contrário do resto de seu povo, os índios, que atendem pelos nomes de Tucan, com cerca de 50 anos, e Mande-I, com mais ou menos 35, conseguiram desenvolver estratégias de sobrevivência extremamente sofisticadas para uma vida sem contato em uma floresta em vias de destruição.
“Olha, o que eu vou dizer para o senhor foi o que eu ditei para escreverem no relatório”, explica Jair Candor. Analfabeto, o filho de seringueiros, assistente dos sertanistas locais, narra um dos maiores feitos das últimas décadas do indigenismo brasileiro. “Só achei eles porque estavam rindo alto e conversando”, diz. Na floresta, não se vê com os olhos, mas com os ouvidos. Os índios estavam distraídos e alegres, por isso foram encontrados. Dois dias antes, Tucan e Mande-I tinham conseguido caçar um porco-do-mato, o vestígio que mais animou Candor na expedição: pedaços de porco assando no moquém em um pequeno “tapiri” (a forma mais elementar de uma aldeia). Pelas marcas na terra, os dois ficaram horas deitados no chão a fazer a digestão do assado. Quando Candor chegou, a fogueira ainda estava acesa.
Segundo o relato oral de Candor, era terça-feira 7 de agosto de 2007. Os dois índios passeavam à beira de um igarapé quando foram encontrados pelos integrantes da Frente de Proteção Etno-Ambiental Madeirinha. O assistente da Funai, escondido atrás de arbustos, desce um pequeno barranco que leva ao igarapé e intercepta o caminho dos indígenas com seu corpo e um assobio. Pronuncia em voz alta e animada a palavra icatu (“bom”, “bom dia”, um cumprimento em tupi). Tucan levanta o machado, encontrado em algum acampamento madeireiro, e faz um gesto ameaçador. Mande-I posiciona-se um passo atrás com um facão à meia altura. Candor permanece parado e sorri. Rita, parente dos isolados (quadro na edição impressa), e o karipuna Aripã, casado com ela e que fala a mesma língua kawahib, ambos integrantes da expedição, gritam palavras que Candor não reconhece. Tucan olha firme para o rosto do funcionário da Funai, abaixa a arma e em seguida também sorri.
Candor dá outra risada e estende os braços. Está sem camisa, para mostrar-se inofensivo. Rita atravessa seu caminho e abraça o índio mais jovem. Eles começam a conversar. Candor diz a Rita para convidá-los a seguir a equipe até o acampamento. “E diga também que eu vou caçar mais um porco para a gente festejar o encontro”, conta. A índia consegue convencer os parentes, que aceitam acompanhar a expedição até o acampamento da Funai, localizado em um retiro da Fazenda Mudança, de propriedade da família Penço, composto de cerca de cinco casas.
Tucan, Mande-I e Rita pertencem à etnia Piripkura, que significa borboleta – um apelido dado por índios da etnia Gavião, inimigos tradicionais. A Funai tem informações escassas a respeito dos piripkuras e torce para que existam mais indivíduos na região. Mas não são pequenas as chances de tratar-se dos últimos remanescentes de um povo massacrado na década de 80. Há muitos relatos de genocídios da tribo. Em toda a Amazônia, aliás, são freqüentes os relatos de extermínio. Em Rondônia, os akuntsu praticamente foram extintos no mesmo período dos ataques sofridos pelos piripkuras.
Tecnicamente, os sertanistas consideram a ação de Candor como um “recontato”. Isso porque, em outras oportunidades, esses índios já haviam sido encontrados na mata. Foram idas e vindas ao longo de anos. A última vez que se teve notícia deles foi em 1997, quando um antropólogo da Funai negou a concessão de uma certidão negativa da presença indígena para uma fazenda de exploração de madeiras. Poucos meses depois, Mande-I bateu na porta de outra fazenda e pediu auxílio, desesperado – estava com diarréia crônica. Foi medicado, a Funai informada de sua presença e logo depois devolvido ao mato. A conclusão a que se chega é que a fundação sabia da existência desses índios desde 1984, mas não deu andamento ao processo de demarcação. Tampouco tentou estabelecer um contato estável para lhes dar assistência. Preferiu deixá-los livres na floresta como sempre viveram, à mercê da ameaça de extermínio pelos grileiros da região.
A Frente Madeirinha foi reaberta em outubro do ano passado. Antes disso, só funcionou efetivamente entre 1988 e 1991. Diante do novo contato, a Funai pretende interditar a área para qualquer tipo de exploração econômica. “Estamos constituindo um grupo de trabalho para fazer a interdição e identificação da área, que é um dever nosso. E protegê-los”, afirmou a CartaCapital o presidente da Funai, Márcio Meira. “É uma área muito delicada e é preciso tomar cuidado, pois, na hora que o grupo chega, é possível que haja um maior movimento de invasores”, afirma.
No dia seguinte ao contato, descobriu-se que Tucan tinha problemas de saúde. Ele urinava “coca-cola”, como descreve a enfermeira Joelina Ribeiro Jorge, que insistiu para que o índio fosse removido do acampamento para um hospital. Mande-I ficou, e depois de alguns dias mais, entediado, decidiu voltar para a vida no mato. Desde então, não fez nenhum novo contato.
Tucan continua em recuperação após ser submetido a uma cirurgia para retirar pedras nos rins e tratar de uma necrose na vesícula. Passa a maior parte do tempo estirado em uma rede em um dos quartos da precária sede da Fundação Nacional da Saúde (Funasa) em Ji-Paraná. Foram necessários 23 pontos para fechar o corte da cirurgia, da barriga ao peito. Em pouco mais de um mês, o índio contraiu catapora e malária. Para lhe fazer companhia, a Funai contratou como intérprete Mauro de Oliveira, que aprendeu a falar kawahib no contato com integrantes da tribo uru-eu-uau-uau no início da década de 80. Oliveira é paciente e atencioso, e nas longas conversas que tem tido com Tucan está conseguindo juntar o quebra-cabeça do extermínio desse povo, história até então desconhecida.
Entre os episódios narrados por Tucan está o do maior ataque sofrido pela etnia. Segundo o relato, um grupo da tribo atravessou o grande rio (provavelmente o rio Roosevelt) em uma canoa cavada no tronco de uma árvore. Do outro lado, um punhado de brancos começou a atirar e vários índios morreram. Os brancos pegaram a canoa e atravessaram até a margem onde estava o grupo de Tucan. De lá, seguiram os rastros até a aldeia. Tucan diz que, no momento, estava em uma árvore a colher mel. Viu tudo de longe, escondido.
Nessa parte da história, o índio senta-se na rede, junta os punhos como se estivesse amarrado e fala agitado. Oliveira traduz: “Amarraram os parentes, cortaram as cabeças, uma a uma, juntaram os corpos e atearam fogo. Ele diz que saiu correndo e, mais tarde, reencontrou Mande-I e alguns outros homens e mulheres que não estão mais com eles”. A narrativa confirma relatos anteriores de Rita. Segundo ela, os sobreviventes retornavam mais tarde às aldeias invadidas para queimar os pertences da tribo e retirar pedaços de carne dos mortos para serem consumidos em rituais de endocanibalismo.
O crime de genocídio denunciado por Tucan ainda não foi investigado. Em setembro, o sertanista Pedro Rodrigues, responsável pela área, sofreu uma emboscada e quase morreu. Rodrigues é ameaçado de morte pelos madeireiros da região, que temem perder terras para os índios. O sertanista conseguiu desviar da armadilha, uma prancha de madeira cravada de pregos para furar o pneu da caminhonete. Mas, em seguida, capotou. Pai de um filho, decidiu pedir demissão. Para a vaga, a Funai vai designar Leonardo Lênin, um jornalista de São Paulo que entrou na fundação por meio de um convênio com a ONG Centro de Trabalho Indigenista (CTI).
“Ele se destacou num curso feito no ano passado, e é o melhor quadro para prepararmos”, afirma o coordenador-geral de Índios Isolados, Elias Bigio. Há 70 quilômetros de onde os piripkuras foram achados, a Funai tenta demarcar a Terra Indígena Kawahiwa do Rio Pardo, na qual vive um grupo de 20 índios isolados. Grande parte da área foi invadida por grileiros. Na região, segundo Bigio, há mais cinco localidades com vestígio de índios, que podem ser kawahib. Mas é preciso ir até lá comprovar. E, no caminho, desviar dos grileiros que não param de chegar à região.
De escrava sexual a expedicionária
A vida de privações de Rita, parente de Tucan e Mande-I
A primeira notícia que se tem de Rita é do ano de 1984. Um piloto de avião fez uma denúncia à Funai de que uma fazenda, chamada Mudança, de propriedade da família Penço, uma das maiores proprietárias de terra da Amazônia, mantinha uma índia vivendo em regime de escravidão. Ela trabalhava na cozinha e servia sexualmente a dezenas de peões do lugar. Nesse tempo, fez tantos abortos que perdeu a fertilidade. Chegou um momento em que a mulher do gerente da fazenda, enciumada, não queria mais a moça por perto e pediu que sumissem com ela – conta-se que sua presença havia provocado brigas e duelos entre os peões. Rita havia machucado o pé e precisava de curativos, que deveriam ser feitos na cidade de Aripuanã. Foi a sua sorte. O piloto fez o transporte e também o serviço de levar a informação à Funai, de forma discreta. Ele já havia demovido o gerente da idéia de matar Rita.
Dois anos antes, Rita havia chegado à fazenda acuada por cães de caça e acompanhada de outro índio da família, um sujeito simpático a quem os peões chamaram de Cumpadre. Um dia, Cumpadre foi colocado em um avião e nunca mais foi visto.
Depreende-se das conversas com Rita que Cumpadre era um líder eminente do povo, o cacique da pequena aldeia, e a acompanhava na jornada em busca de um novo marido. O anterior havia morrido por ter se engasgado com um espinho de peixe. Sem condições de criar os filhos, Rita teve de assistir ao assassinato dos dois por decisão da tribo. O encarregado das mortes teria sido Tucan, contatado mais de 20 anos depois pelo grupo da Funai do qual Rita faz parte. Por isso, conta a índia, há uma animosidade entre eles.
Na cidade, Rita foi viver na Funai local e, posteriormente, sem esperanças de vida, casou-se com Tio Karipuna. Depois da morte de Tio, casou-se com o outro karipuna, Aripã, com quem vive até hoje. Entre um casamento e outro, Rita escondeu-se por seis meses nas matas de um parque da cidade de Porto Velho, na tentativa de reencontrar a vida na floresta. Foi um drama do qual ela não gosta de falar. Com dificuldade de expressar-se em português, e disposta a reencontrar o seu povo, ela tem integrado as expedições de contato da Funai. Hoje, com cerca de 45 anos, espera ter a chance de voltar à terra de onde foi retirada. Antes que seja tarde.
por Felipe Milanez e Araquém Alcântara (fotos), de Colniza (MT)
fonte: Carta Capital - Edição 468
Fotos:
Sem comentários
Enviar um comentário