Tabatinga: a tríplice fronteira da desconfiança
À beira do Solimões, a cidade de onde parte a expedição é fronteira entre Brasil, Peru e ColômbiaRoberto Almeida - O Estado de S. Paulo
terça-feira, 1 de dezembro de 2009, 16:35
Ali, na fronteira, um solitário guarda da polícia nacional colombiana faz as vezes de agente fiscalizador e não há presença da polícia brasileira, apesar de ser uma notória rota de entrada de drogas no País.
A Polícia Federal, no entanto, está firme no aeroporto. No domingo, dia 30, um homem foi preso tentando embarcar com cocaína adesivada ao corpo.
O Ministério Público Federal em Tabatinga sofre com mudanças constantes de seus quadros. Segundo o procurador Juliano Gasperin, há sete meses no cargo, ele está próximo de bater um recorde. Ninguém ficou mais do que ele até hoje em Tabatinga.
Gasperin diz que não há problema de continuidade. O trabalho segue adiante, e a luta contra quadrilhas que operam na área tem tido sucesso, afirma. Um dos chefes do crime em Tabatinga morreu, o outro está para ser extraditado.
Agora, observou o procurador, a cidade ganhou seu primeiro promotor em três anos. E pode melhorar ainda mais. Mas ele não descarta a possibilidade de que membros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) estejam transitando por ali.
Tabatinga é riscada, lado a lado, pela Avenida da Amizade. Tem um posto de gasolina e um semáforo. Mas o trânsito de motos compradas a preço de banana na Colômbia é incessante.
Arlindo Ferreira é mototaxista. Cobra R$ 2 por uma corrida dentro de Tabatinga. Para ir à Colômbia, cobra R$ 4. Diz que tira R$ 40 por dia no serviço e já construiu seu “tapirizinho”.
Casado, tem seis filhos, é mais um dos que tentam ganhar a vida nessa fronteira pobre e distante do resto do Brasil. “Com qualquer R$ 1.000 dá pra tirar moto na Colômbia. Nem precisa comprovar renda”, explicou.
A sua moto, porém, foi financiada pela nora que mora em Manaus. E veio de barco, porque Tabatinga não tem estrada.
O poder público mal começou a tomar as rédeas da situação. Agora andar de moto sem capacete dá multa, mas é comum ver bebês de colo nos braços dos passageiros.
O transporte coletivo é feito por parcas kombis que passam pela aldeia ticuna de Umariaçu, a leste da cidade, cruzam o centro de Tabatinga, e levam os passageiros até Letícia.
Nos três dias que a reportagem passou na tríplice fronteira, não viu uma abordagem policial sequer. O clima em Tabatinga é de uma tranquilidade tensa. Sorrisos são escassos e a hospitalidade, desconfiada.
Primeiro contato do repórter Roberto Almeida
Email recebido pela redação no dia 29 de novembro de Manaus, Amazonasterça-feira, 1 de dezembro de 2009, 17:06
Na trilha dos isolados
Conheça os objetivos da expedição nas entranhas da Terra Indígena Vale do Javari, oeste do AmazonasRoberto Almeida - O Estado de S. Paulo
terça-feira, 1 de dezembro de 2009, 17:18
São Paulo - Um sobrevoo realizado em julho deste ano pela Funai constatou o aparecimento de uma grande clareira próxima ao rio Boia, nas entranhas da Terra Indígena Vale do Javari, oeste do Amazonas. Quem a fez? Por quê? Quais foram os vestígios deixados?
A área é habitada por índios isolados, nunca contactados. São tribos com população estimada de 200 a 300 integrantes sem etnia definida, sem idioma conhecido. Sabe-se apenas de suas movimentações pela mata fechada por meio de imagens feitas por satélite e por relatos de índios ticunas, que afirmam ter visto traços de presença humana às margens do rio.
Para confirmar a existência da tribo, a Funai lançou no dia 1º de dezembro uma nova expedição da Frente Etno-Ambiental Vale do Javari, comandada pelo indigenista Rieli Franciscato. Serão percorridos mais de mil quilômetros pelos rios Solimões, Jutaí e Boia até chegar à área dos isolados, nunca investigada pela Funai.
A partir daí, serão feitas incursões de até 20 dias dentro da floresta para reconhecer vestígios dessa população misteriosa.
Não será feito contato. O objetivo é confirmar as referências do sobrevoo, das imagens do satélite e dos relatos dos ticunas para entender quem são e o que fazem esses índios isolados. As informações colhidas na incursão devem ajudar a protegê-los dos avanços de pescadores, garimpeiros e madeireiros pelo Vale do Javari.
A expedição, com duração mínima de 45 dias, será acompanhada pelo repórter Roberto Almeida e pelo repórter-fotográfico J.F. Diório, que embarcaram entre índios e mateiros no barco Kukahã, em Tabatinga, cidade da tríplice fronteira Brasil-Peru-Colômbia.
Com paradas previstas nos municípios São Paulo de Olivença, Amaturá, Santo Antônio do Içá, Tonantins e Jutaí, eles relatarão a situação dos índios já contactados do Vale do Javari. E com a incursão na floresta, apresentarão a situação da tribo desconhecida do rio Boia.
Por que fizeram a clareira? Quais foram os vestígios deixados? E o mais importante: eles estão ameaçados?
Segundo contato do repórter Roberto Almeida
Email recebido pela redação no dia 1º de novembro de Tabatinga, Amazonasterça-feira, 1 de dezembro de 2009, 17:29
Expedição busca tribo desconhecida de índios na Amazônia
Frente coordenada pela Funai passará por vilarejos do Alto Solimões e deve entrar na selva na altura do rio BoiaRoberto Almeida, de O Estado de S. Paulo
terça-feira, 1 de dezembro de 2009, 18:55
TABATINGA - Às 14h30 do dia 1º de dezembro, partiu do porto de Tabatinga uma nova expedição da Frente Etno-Ambiental do Vale do Javari, braço da Funai de proteção a uma das maiores reservas indígenas do Brasil, com 8,5 milhões de hectares. Um total de 17 pessoas embarcaram no Kukahã, sendo que 13 devem seguir até o fim da jornada, quando penetrarão na selva que envolve o rio Boia, região central do Vale do Javari.
Embarcarão ainda em Jandiatuba, a alguns dias de viagem de Tabatinga, José Moisés e Anderson Ribeiro, mateiros experientes e donos da confiança do indigenista Rieli Franciscato.
O barco Kukahã, com 14,5 metros de comprimento, 1,20m de calado e dono de um potente motor Mercedes Benz seis cilindros escorre pelo Rio Solimões, desviando de toras que povoam o leito do rio. Franciscato morou nele por seis anos.
Agora, Kukahã vai rumo a São Paulo de Olivença, em um trajeto que deve durar 10 horas. Em seguida, a expedição passará por outras pequenas cidades do Alto Solimões até entrar no rio Jutaí e, em seguida, no rio Boia, onde estão os índios isolados.O Estado acompanha esta jornada desde o começo até o fim, previsto para final de janeiro.
Quem fez as clareiras e por quê? É isso que a equipe tentará descobrir.
Milícia indígena completa um ano comemorando expansão
Segundo cacique, objetivo é preencher vácuo deixado pela PF e Funai no combate a violênciaRoberto Almeida, enviado especial
terça-feira, 1 de dezembro de 2009, 20:19
TABATINGA - Apesar de considerada ilegal pela Polícia Federal e pela Fundação Nacional do Índio (Funai), a Polícia Indígena do Alto Solimões (Piasol) completou um ano de controle sobre a aldeia ticuna Umariaçu, de 4 mil habitantes, adjacente a Tabatinga, na fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia.
A 1ª Companhia Indígena de Polícia do Alto Solimões, como se autointitula, foi formada em dezembro de 2008 e tem hoje cerca de 100 soldados, uniformes, estatuto próprio e hierarquia. A "delegacia", na entrada da aldeia, é improvisada em uma casa de madeira, com pinturas de panteras negras, uma cela e um depósito onde estão guardadas garrafas de cachaça apreendidas pelos soldados. O objetivo da milícia - rótulo rejeitado pelos integrantes da Piasol - é "garantir a ordem na aldeia", que segundo eles estava à mercê do alcoolismo, do consumo de drogas e de um alto índice de suicídio.
De acordo com o cacique ticuna Santo Mestâncio Alexandre, que participou da criação da Piasol, "a Funai e a Polícia Federal nunca tomaram providências" sobre a violência na aldeia. "Não tinha jeito de melhorar. Sentamos e resolvemos que somos capazes de ter nossa própria segurança", disse. Segundo a milícia, a criminalidade diminuiu muito.
Está proibida a entrada de bebidas alcoólicas e drogas. Para reprimir, a 1ª Companhia da Piasol em Umariaçu conta com cassetetes, palmatórias e duas algemas. Na entrada da aldeia há um posto de parada, para revistas. O cacique admite que há uso de violência em certas ocasiões, como para "apartar briga". "Sem isso, a pessoa não cede", disse. Segundo milicianos, cerca de 90% dos integrantes do grupo é de reservistas do Exército, que fazem patrulhas à noite na área da aldeia.
"A gente chama a polícia, mas ela não tem vindo, e isso é discriminação. O povo tem direito de pedir ajuda, mas eles discriminam", afirmou o "2º delegado" Bercildo Ponciano, que serviu o Exército entre 2001 e 2008.
Como punição a quem desobedecer à milícia, os ticunas da 1ª Companhia afirmam prender os "criminosos" por 24 horas. Em casos específicos, relatou o cacique, a Piasol leva o efetivo à casa de um suspeito para "aconselhar". "Tudo com muito respeito, a gente diz o que não pode fazer", garante. Quando há resistência, Isaquiel Caetano, um ticuna de 1m85, cabeça raspada, roupa preta e coturno é chamado para "resolver", dizem os soldados.
O Estado caminhou com a milícia por uma hora dentro da aldeia e a comunidade mostrou-se indiferente. O clima era de aparente tranquilidade. Mas sua presença divide opiniões. Ticunas não a consideram uma polícia oficial e são obrigados a obedecer a um toque de recolher, às 22h. Enquanto isso, a Polícia Federal investiga duas mortes ocorridas em aldeias próximas a Umariaçu. A suspeita caiu sobre membros da Piasol.
O modelo da milícia foi copiado em oito localidades, cada uma com sua Companhia, em que há relatos de uso de espingardas de caça. Os membros da 1ª Companhia em Umariaçu mostraram-se orgulhosos da expansão.
Milícia remunerada
O próximo passo da Piasol em Umariaçu, contou o cacique, é tentar uma lei que garanta remuneração do governo para os membros da milícia. Hoje, eles dizem viver de "doações voluntárias da comunidade". O objetivo, acordado por todos na "delegacia", é oficializar a "polícia indígena".
A última investida da 1ª Companhia foi pedir ao Ministério Público Federal para portar armas, o que foi negado. No entanto, os índios afirmam manter a intenção "para impor respeito".
O procurador federal em Tabatinga, Juliano Baggio Gasperin, que negou recentemente a utilização de armas por membros da Piasol, pediu para que o único antropólogo do Ministério Público Federal do Amazonas, Walter Coutinho, fosse à aldeia Umariaçu para avaliar a atuação da milícia. "Sem um laudo antropológico não podemos nos manifestar. Temos de zelar pelos costumes e tradições deles. Eles têm formas próprias de solução de conflito", afirmou.
O requerimento para que o antropólogo compareça a Tabatinga foi feito há três meses, antes dos assassinatos, mas a previsão é de que os trabalhos só comecem de fato em janeiro ou fevereiro. "Qualquer medida tem de ter uma opinião de especialista", observou. "Só assim poderemos avaliar o pedido deles de reconhecimento."
Para Gasperin, o caso é de "grande complexidade" e levará tempo para ser solucionado. "Ficar do jeito que está não dá, mas teremos de aguardar", disse. De acordo com ele, o laudo possibilitará à procuradoria entender se a "polícia indígena" tem de fato legitimidade nas aldeias.
Para o inquérito aberto pela Polícia Federal, agentes continuam colhendo depoimentos sobre os dois assassinatos nas comunidades onde a milícia atua. A Funai afirmou, por meio de sua assessoria de comunicação, que não reconhece o status de polícia dos ticunas. E que não recebeu nenhuma comunicação oficial da Funai em Tabatinga alertando para riscos da atuação da milícia.
Porta-voz culpa magia negra
Vestindo um tênis all-star, gestos contidos, magro e com apenas 26 anos, o cacique Santo Mestâncio Alexandre é o porta-voz da Piasol. No dia 24 de novembro, ele assumiu com orgulho a responsabilidade sobre a milícia que atua na aldeia de Umariaçu. Esbraveja quando diz que "a imagem do índio é de gente jogada bêbada pelas ruas" e afirma que está "fazendo o melhor para a comunidade".
O cacique sentou-se à única mesa da "delegacia" para explicar ao Estado como funciona a Companhia e acabar com o "mal entendido" sobre as duas mortes das quais membros da Polícia Indígena do Alto Solimões são suspeitos. "Fiquei muito triste", disse, reforçando a entonação. "Porque a Polícia Federal ficou de olho nos indígenas." De acordo com o cacique, um dos assassinatos ocorreu porque um pajé havia enfeitiçado membros da comunidade em São Paulo de Olivença. O outro, por culpa de magia negra. "Não tem nada a ver com a polícia indígena, mas se alguém não acabar com essas coisas (feitiços e magia negra), isso vai continuar", disse.
Ao falar do uso de armas pela Piasol, o cacique disse ser totalmente a favor para "pegar quem está longe". "O cassetete não alcança", justificava, quando imediatamente intervieram os colegas pregando "uso pacífico" de espingardas. Na caminhada pela aldeia, ele estava mais tranquilo e conversava alegremente. Mostrou as escolas, as melhorias nas casas e, ao driblar um grupo de crianças que corriam pela rua, alertou para o toque de recolher. "Criança na rua assim de noite não tem mais", afirmou.
"A gente levou muitos anos sofrendo. Faltava melhorias de moradia, não tinha representante dos povos. O cacique tinha perdido o poder. A gente levou anos pedindo para minimizar a violência, e não tinha jeito de melhorar. Mas agora com essas ideias tudo melhorou", sorriu.
Para o cacique, quem fez a denúncia dos assassinatos "não gosta de ver a comunidade melhorar". Perguntado sobre a tarefa de zelar pela aldeia, não se conteve e gargalhou. "Rapaz, é muita responsabilidade mesmo. Mas agora a gente quer melhorar a comunidade cada vez mais."
Funai inicia expedição para observar índios isolados
Repórter e fotógrafo do 'Estado' acompanharão viagem que deve durar no mínimo 45 diasRoberto Almeida, ENVIADO ESPECIAL, TABATINGA
Fundação Nacional do Índio (Funai) lançou ontem uma nova expedição na Frente Etnoambiental Vale Javari, na região oeste do Estado do Amazonas. Comandada pelo indigenista Rieli Franciscato, ela deverá percorrer mais de mil quilômetros pelos rios Solimões, Jutaí e Boia até chegar a uma área de índios isolados nunca antes investigada pela Funai.
A expedição começou a ser organizada em julho, quando, após um sobrevoo pela região, a Funai constatou o surgimento de uma grande clareira próxima ao rio Boia, nas entranhas da Terra Indígena Vale do Javari. A Funai quis saber então quem a fez, por qual motivo e qual a sua extensão.
A área é habitada por índios isolados, nunca contatados. São tribos com população estimada de 200 a 300 integrantes sem etnia definida e sem idioma conhecido.
Sabe-se de suas movimentações pela mata fechada por meio de imagens feitas por satélite e por relatos de índios ticunas, que vivem nas proximidades daquela área. Eles afirmam ter visto traços de presença humana às margens do rio.
VESTÍGIOS
O grupo que faz parte da expedição seguirá no navio Kukahã, que saiu ontem de Tabatinga, até a área a ser explorada. A partir daí, serão feitas incursões dentro da floresta para reconhecer vestígios dessa população misteriosa.
O tempo médio previsto de cada incursão - sem o apoio direto do barco, que ficará à espera no rio - será de vinte dias .
Não se procura fazer contato com os índios. O objetivo é confirmar as referências do sobrevoo, das imagens do satélite e dos relatos dos ticunas para entender quem são e o quê fazem esses índios isolados. As informações colhidas na incursão servirão para ajudar a protegê-los dos avanços de pescadores, garimpeiros e madeireiros pelo Vale do Javari.
A expedição, com duração mínima de 45 dias, reúne índios, mateiros e especialistas em questões indígenas. Também fazem parte da equipe o repórter Roberto Almeida e o repórter-fotográfico J.F. Diório, do Estado.
Relatos sobre o avanço da equipe da Funai, fotos e mapas da região poderão ser acompanhados pelos leitores no site estadao.com.br.
CONTATADOS
Na primeira etapa da viagem estão previstas paradas nos municípios São Paulo de Olivença, Amaturá, Santo Antônio do Içá, Tonantins e Jutaí. São áreas onde vivem índios já contatados do Vale do Javari. De cada uma dessas cidades deverá ser enviado material para o site.
Mais tarde o grupo segue para a região do Rio Boia, onde estaria a tribo desconhecida. A partir daí, no interior da floresta, a transmissão de textos e fotos deverá se tornar mais difícil.
O casco é de madeira, o piso é de fibra. São 14,5 metros de comprimento, 1,20m de calado e cinco "cômodos". Apenas um quarto.
O indigenista Rieli Franciscato morou no único quarto do Kukahã durante seis anos. Fez diversas reformas. Seu camarote, atrás da cabine de comando, tem ar condicionado, cama, armários em 2 m2. Espaço pequeno, se comparado aos demais cômodos.
Na popa, um gerador a diesel alimenta os congeladores, que estocam carnes e mantém a água da equipe gelada. A área, com um pequeno deck, é também a pia e o chuveiro - com baldes d'agua do rio lavam-se pratos e toma-se banho.
A cozinha, de 12 m2, tem um fogão de quatro bocas, freezer, armário para pratos e talheres. Divide espaço com a despensa, onde estão os não-perecíveis, e com um banheiro exíguo. O cozinheiro é Silas, que se vira no arroz, feijão, carne, peixe, frango e salada. Um voluntário descasca cenouras, batatas e beterrabas.
Da cozinha, uma portinhola leva ao salão principal. Lar do motor Mercedes-Benz de 120 cavalos e seis cilindros, que empurra o Kukahã Solimões acima e descerá parte do rio Jutaí. Quatro janelas, 30 m2 para 17 pessoas esticarem a rede. Quatro lâmpadas fluorescentes iluminam a noite. Embaixo, o porão guarda mais comida para os dois meses de viagem.
Em cima do motor, na boca do salão, a tampa funciona como mesa onde são servidas as refeições. Depois vem o cafezinho adoçado e o rádio toca os brasileiros samba e forró, além de cumbia e reggaeton colombianos. O som vem do MP3 player do garoto Bini Matis.
O teto é baixo, com cerca de 1m80. As cabeçadas nas ripas de madeira que sustentam o deck superior são a diversão da equipe.
À frente, na proa aberta, espaço pequeno para as cordas que amarram a embarcação. Misael, Wilson Kanamari, Jeremias e Valderi trabalharam ali, sentados à beira do rio, para ajeitar as redes que jogam no rio Jandiatuba para tentar mudar o cardápio do jantar.
Uma escadinha no salão principal leva ao deck superior, ao camarote do chefe da expedição e à cabine de comando. De cima, a vista do rio é privilegiada, a brisa sopra e o mosquito não vem.
A área do deck é também a casa do dominó nos dias longos. Duas pequenas varandas nas laterais ainda dão espaço a mais redes. Uma portinha é a do camarote. A outra, da cabine de comando.
Bússola, medidor de temperatura do motor, rotação, pressão do óleo e um marcador de milhagem não muito condizente com a idade do barco - estão lá apenas 5.670 milhas navegadas. No teto, uma alça para manejar o holofote à noite. Manete de aceleração e leme completam a pouca parafernália que Valderi, o piloto, e Rafael, o marinheiro, têm à disposição.
Até o fim de janeiro, Kukahã vai percorrer mais de mil quilômetros até o rio Boia. Dali em diante, a equipe parte em voadeiras para entrar nos igarapés. Depois é pé na mata.
O tempo de viagem era para ser mais curto, não fosse um rápido temporal, de meia hora, que fez com que o chefe da expedição, Rieli Franciscato, pedisse para acostar na margem. Medo de um vento forte contra a corrente do rio, que poderia causar um "banzeiro" - ondas de até um metro, sem direção, que causariam danos à embarcação.
A parada no posto fluvial da Polícia Federal no Solimões também tomou uma hora da viagem. Os agentes da PF trabalham ali, na beira do rio, em um barco improvisado para coibir a entrada de drogas no País, vindas do Peru e da Colombia. Quem passar sem parar é perseguido e averiguado.
Com a documentação em ordem, seguimos viagem a não mais que 10 km/h. A noite caiu, com lua coberta pelas nuvens, e o único guia nesses casos é um grande holofote, no teto do barco, operado pelo piloto. Acende, ilumina os troncos, apaga o breu assume seu lugar.
Navegar no Solimões é mais perigoso do que no mar, garante Rieli. O rio muda de feição a cada passada, as "praias" ou bancos de areia invisíveis para o leigo se movem pelo leito sem que ninguém veja. O rio não tem canal de passagem definido. O calado do Kukahã tem 1m20 e é fácil encalhar.
Valderi sabe disso há 19 anos. Foi de copiloto pela primeira vez quando tinha 17, hoje tem 36 e diz que levou pelo menos 4 anos para pegar no leme a primeira vez. Olhando e ouvindo as instruções dos mais velhos, aprendeu todos os truques do rio, que engana quem bobear.
Rafael, o marinheiro, tem apenas 20 anos. É sua primeira vez no Solimões. Ele conhece bem o Jutaí, afluente rio acima, mas ainda é novato no desvio dos troncos. Se também levaria 4 anos para aprender? O garoto respondeu de pronto: "Uma vez só tá mais que bom."
A paisagem homogênea da Amazônia verde na margem, marrom na água, negra no céu só é cortada pelos pescadores e poucas casas de ribeirinhos. É época da piracema, mas uma concentração de cerca de 20 voadeiras perseguia cardumes com seus motores de 5 HP.
O jantar saiu com galinha ensopada, arroz, salada e duas garrafas de guaraná. As redes coloridas tomaram conta da área comum do barco. Seis horas depois, São Paulo de Olivença não passava de algumas luzes na margem do Solimões.
Ali, os galos já cantavam e os mosquitos carapanãs esperavam o barco atracar para fazerem a festa.
A primeira foi de um parente de Txami, que corria na floresta atrás de uma anta para caçar. E, sem querer, pisou em cima de uma onça, que estava escondida na mata. O susto foi tão grande que o parente se desequilibrou, mas conseguiu escapar. E deu risada.
A segunda teve sangue. Outro parente de Txami plantava macaxeira quando foi mordido na cabeça por uma onça, e está no hospital em Manaus. Em detalhes, o matis explicou que a fera começa a comer a vítima pelo pescoço, e rói dali para dentro do tórax em busca do coração e do fígado. Aí Txami já não riu tanto.
Na terceira, foi causo de patada. Parente de Txami caçava macacos com uma zarabatana quando sentiu uma garra arranhar o ombro e descer pelo braço, rasgando o músculo. Mas se salvou.
Wilson Kanamari aproveitou o embalo e, de sua voz estancada, saíram mais histórias de onças de Remansinho, sua aldeia no rio Itaquaí, dentro da Terra Indígena Vale do Javari.
Na sequencia, Txami e Wilson começaram a falar das consequencias dos causos de onça. Os pesadelos.
Índios não precisam do conto de fada da Chapeuzinho Vermelho para saber que não dá para tomar o caminho errado na floresta. A realidade da Amazônia é mais que suficiente para povoar o inconsciente de imagens de perigo.
E então vêm as elaborações dos causos de onça em forma de sonho. À noite, os sons da floresta excitam a imaginação, e o resultado é previsível: alguns acordam suando, com medo, ou até gritando.
O marinheiro Rafael garante que esses dias sentiu uma onça roçando o lado direito de sua rede à noite. Não conseguiu mais dormir. O ticuna Misael acordou resfolegando, achando que o barco estava afundando.
Mas a história mais tragicômica foi contada por Txami. Um mateiro acordou aos berros, achando que macacos estavam lhe arrancando os testículos.
Chico não estava lá para contar história. Seu tapiri tem 9 m2, teto de sapê, duas faces de madeira, duas totalmente abertas. A lenha foi cortada e o fogão foi montado para cozinhar os peixes. Uma boa quantidade de jaraquis.
Escuridão total, 20h30 todos dormindo que no dia seguinte 3h50 todo mundo de pé, desmontar acampamento, tomar café com pão, fritar o resto dos peixes para comer no almoço. Às 6h30, o Jandiatuba de novo.
Tédio toma conta do caminho, homogêneo, mas o trajeto é tranquilo. Ao meio-dia, sem parar o barco, almoçar o peixe. Agora não falta muito, mas o sol queima e o perigo de insolação cresce.
Com a voadeira pesada, o chefe Rieli decide esconder no mato galões de gasolina, marcados com GPS, para buscar depois, na volta. E serviram para reabastecimento.
No fim da tarde aparece a base do Jandiatuba. Seis quartos, sala de TV, refeitório e mais instalações. Equipe passa ali dois meses a fio, com 10 dias de folga. Anderson "Popeye", um deles, pescava e trouxe caldeirada para o povo. A TV com parabólica hipnotizou até que dormir não era opção.
Dia seguinte, sexta-feira 4, todos de pé, café com pão, e José, o outro mateiro, terminava de preparar um barco novo. Fácil seria não fosse ataque de piuns, mosquitos minúsculos, que deixam bolha de sangue na picada.
As horas correram na passada de piche, no arrastar do casco para a água e na tentativa de colocar motor. Não deu certo, pesou, e o barco empinou demais.
Bom que foi tranquilo, porque no sábado 5 a equipe levantou às 3h para voltar ao barco parado. Às quatro na voadeira. E pelas 13 horas seguintes, sem parar, ela riscou o Jandiatuba com sol e com chuva até reencontrar Kukahã.
Dados sobre o trecho:
Tempo total de viagem
30 horas
Distância percorrida
830 km
Previsão de dois dias de viagem, no rumo da correnteza, descendo o rio. Às 6h, Kukahã deixou o Jandiatuba e contornou o cotovelo da entrada no Solimões. Ao meio-dia, passava ao largo de Amaturá, cidade na margem onde se via só letreiro e torre de igreja com andaimes.
Gado pastando, lixo no leito. Garrafas plásticas, chinelos, carteiras de cigarro, lixo no Solimões em frente às cidades. Foi assim também às 15h de Santo Antônio do Içá, às 17h quando deixou Tonantins para trás.
Seu Fernando, de péc-péc, ou canoa movida a motorzinho 5HP, encostou no Kukahã com pressa para vender macaxeira, limão, pimenta, milho e peixinho mandi. Barba branca olho azul, diz que veio do Ceará. Pediu troca por "combustol", o diesel que move seu péc-péc.
Na canoinha, menino e menina, só de bermuda e calcinha, pisavam a água marrom. O garoto trepou no Kukahã, foi advertido por seu Fernando e desceu rápido, pendurado pelo braço.
O chefe da expedição, Rieli, não sabia quanto valia a troca no balde de macaxeira, na panela de pimenta com limão. Seu Fernando só dizia "vê quanto o senhor pode me dar." Depois não resistiu e cobrou. "Vê 10 litros do 'combustol' que paga." Pagou.
Macaxeira se misturou com a carne do almoço, e a viagem seguiu rumo a Jutaí. Facão na lima, depois no esmeril para entrar na mata no fim de dezembro.
Parada brusca só no fim da tarde, com o sol caindo, quando balsa cheia de gás pediu por socorro. Motor quebrou. Na camaradagem do Solimões, o piloto Valderi ofereceu ajuda e logo foi empurrar. Mais de mil botijões parados no rio que foram para a margem, esperar por um socorro maior.
E durante a tarde toda, o radinho de pilha pegou rádio AM para ouvir a rodada final do Brasileirão. Metade do barco, assim como metade do Amazonas, é rubro-negra. Sofreu com o gol do Grêmio, vibrou com a virada e gritou na levantada do caneco. Kukahã virou Flamengo até que o chefe lembrou a todos que é palmeirense. E que ficou fora da Libertadores.
quarta-feira, 9 de dezembro de 2009, 18:43
Amazônia - O Posto Indígena de Vigilância e Proteção (Pivip) do Jandiatuba é o mais novo dos três geridos pela Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari. Foi instalado em 2007.
O Pivip fica no rio Jandiatuba, afluente da margem direita do Solimões, que corta a porção leste da Terra Indígena Vale do Javari.
O objetivo é coibir a entrada de pescadores, caçadores e traficantes. Funcionários disparam alarmes e usam voadeiras para perseguir infratores, que buscam especialmente a carne do pirarucu, em extinção.
Nas instalações permanecem pelo menos quatro pessoas que vigiam a área. Nos arredores, em uma área de 20 quilômetros ao sul, já há registros de malocas e roças de índios isolados, não-contactados.
Os funcionários permanecem lotados na base durante 60 dias. E ganham folga de 10 dias para voltar para suas famílias.
Mateiro ticuna Misael amarrou o barco em pé de araçá alagado na noite de dezembro 9, e perfume da planta vinha para dentro com a brisa da noite aberta. Depois sentou na proa e começou a contar história que juntou Txami Matis, Bini Matis e Wilson Kanamari.
De onde veio o homem, para etnia ticuna? No princípio, era o jenipapo.
Dois espíritos irmãos, um bom e um ruim, perambulavam na Terra. O bom tinha mulher, o ruim não. Quando bom saiu para caçar, ruim tratou de fazer filho nela.
Só que irmão bom voltou, viu mulher grávida. E decidiu se vingar.
Criança nasceu com ordem superior de o irmão ruim pintar ela com raspa de jenipapo. Quando subiu na árvore para pegar o fruto, o bom lançou feitiço: jenipapo e irmão traiçoeiro seriam a mesma coisa.
Assim que começou a raspar o jenipapo sobre a criança, irmão ruim raspava a si mesmo. E como era preciso obedecer ordem superior, ele se raspou todo, até acabar.
Para se livrar do irmão ruim de vez, irmão bom jogou as raspas de jenipapo no rio. E elas viraram peixe-gente. Gente ruim.
E assim se dividiram as pessoas. Filho que irmão bom teve depois com a mulher viraram gente boa. E gente ruim foi pescada no rio.
"Ticuna que bebe, usa droga e briga, esses tem até marca de anzol no beiço", disse Misael.
QUEM SÃO OS TICUNAS
A etnia ticuna é a mais numerosa do oeste do Amazonas. São mais de 30 mil índios que vivem em diversas comunidades. Uma das maiores é a de Umariaçu, colada na cidade de Tabatinga.
Eles vivem em aldeias, mas vida do não-índio da fronteira com Peru e Colômbia está muito próxima. Assim como o álcool e as drogas. Alguns ticunas são usados de mula para transportar cocaína.
Na equipe da Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari há dois ticunas: o mateiro Misael e o ajudante de campo Jeremias, que é mestiço.
Wilson Kanamari jogava malhadeira um mês atrás. Queria surubim, mandi, pacu, mas veio arraia que espetou ferrão em sua canela direita.
Foi na aldeia kanamari Remansinho, na beira do rio Itaquaí, dentro da Terra Indígena Vale do Javari.
Na pisada em falso, arraia estava em baixo e não perdoou. Ferroada deixou buraco na canela, inchou tudo até o joelho e não deixava Wilson andar.
Passou tempo sem tomar remédio, ferida aumentou. Mas a ferida agora que é tratada com iodo dentro de Kukahã. Em volta, esparadrapo, gaze e algodão.
Arraia é comum, e está em tudo quanto é rio. Tem várias espécies, mas essa Wilson não sabe dizer qual era.
A lição que fica é que na amazônia não dá para pisar em falso, como fez o kanamari.
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A expedição começou a ser organizada em julho, quando, após um sobrevoo pela região, a Funai constatou o surgimento de uma grande clareira próxima ao rio Boia, nas entranhas da Terra Indígena Vale do Javari. A Funai quis saber então quem a fez, por qual motivo e qual a sua extensão.
A área é habitada por índios isolados, nunca contatados. São tribos com população estimada de 200 a 300 integrantes sem etnia definida e sem idioma conhecido.
Sabe-se de suas movimentações pela mata fechada por meio de imagens feitas por satélite e por relatos de índios ticunas, que vivem nas proximidades daquela área. Eles afirmam ter visto traços de presença humana às margens do rio.
VESTÍGIOS
O grupo que faz parte da expedição seguirá no navio Kukahã, que saiu ontem de Tabatinga, até a área a ser explorada. A partir daí, serão feitas incursões dentro da floresta para reconhecer vestígios dessa população misteriosa.
O tempo médio previsto de cada incursão - sem o apoio direto do barco, que ficará à espera no rio - será de vinte dias .
Não se procura fazer contato com os índios. O objetivo é confirmar as referências do sobrevoo, das imagens do satélite e dos relatos dos ticunas para entender quem são e o quê fazem esses índios isolados. As informações colhidas na incursão servirão para ajudar a protegê-los dos avanços de pescadores, garimpeiros e madeireiros pelo Vale do Javari.
A expedição, com duração mínima de 45 dias, reúne índios, mateiros e especialistas em questões indígenas. Também fazem parte da equipe o repórter Roberto Almeida e o repórter-fotográfico J.F. Diório, do Estado.
Relatos sobre o avanço da equipe da Funai, fotos e mapas da região poderão ser acompanhados pelos leitores no site estadao.com.br.
CONTATADOS
Na primeira etapa da viagem estão previstas paradas nos municípios São Paulo de Olivença, Amaturá, Santo Antônio do Içá, Tonantins e Jutaí. São áreas onde vivem índios já contatados do Vale do Javari. De cada uma dessas cidades deverá ser enviado material para o site.
Mais tarde o grupo segue para a região do Rio Boia, onde estaria a tribo desconhecida. A partir daí, no interior da floresta, a transmissão de textos e fotos deverá se tornar mais difícil.
Kukahã: A Casa da Equipe
O barco que leva a expedição da FunaiRoberto Almeida, enviado especial à Amazônia
sexta-feira, 4 de dezembro de 2009, 18:38
O barco tem São 14,5 metros de comprimento, 1,20m de calado e cinco "cômodos" Foto: JF Diorio/AE
Kukahã, que significa Rio Purus, tem certamente mais de 30 anos. O barco foi comprado pela Funai há pelo menos 15, já com sinais de desgaste. Hoje está a serviço da Frente Etnoambiental do Vale do Javari.
O casco é de madeira, o piso é de fibra. São 14,5 metros de comprimento, 1,20m de calado e cinco "cômodos". Apenas um quarto.
O indigenista Rieli Franciscato morou no único quarto do Kukahã durante seis anos. Fez diversas reformas. Seu camarote, atrás da cabine de comando, tem ar condicionado, cama, armários em 2 m2. Espaço pequeno, se comparado aos demais cômodos.
Na popa, um gerador a diesel alimenta os congeladores, que estocam carnes e mantém a água da equipe gelada. A área, com um pequeno deck, é também a pia e o chuveiro - com baldes d'agua do rio lavam-se pratos e toma-se banho.
A cozinha, de 12 m2, tem um fogão de quatro bocas, freezer, armário para pratos e talheres. Divide espaço com a despensa, onde estão os não-perecíveis, e com um banheiro exíguo. O cozinheiro é Silas, que se vira no arroz, feijão, carne, peixe, frango e salada. Um voluntário descasca cenouras, batatas e beterrabas.
Da cozinha, uma portinhola leva ao salão principal. Lar do motor Mercedes-Benz de 120 cavalos e seis cilindros, que empurra o Kukahã Solimões acima e descerá parte do rio Jutaí. Quatro janelas, 30 m2 para 17 pessoas esticarem a rede. Quatro lâmpadas fluorescentes iluminam a noite. Embaixo, o porão guarda mais comida para os dois meses de viagem.
Em cima do motor, na boca do salão, a tampa funciona como mesa onde são servidas as refeições. Depois vem o cafezinho adoçado e o rádio toca os brasileiros samba e forró, além de cumbia e reggaeton colombianos. O som vem do MP3 player do garoto Bini Matis.
O teto é baixo, com cerca de 1m80. As cabeçadas nas ripas de madeira que sustentam o deck superior são a diversão da equipe.
À frente, na proa aberta, espaço pequeno para as cordas que amarram a embarcação. Misael, Wilson Kanamari, Jeremias e Valderi trabalharam ali, sentados à beira do rio, para ajeitar as redes que jogam no rio Jandiatuba para tentar mudar o cardápio do jantar.
Uma escadinha no salão principal leva ao deck superior, ao camarote do chefe da expedição e à cabine de comando. De cima, a vista do rio é privilegiada, a brisa sopra e o mosquito não vem.
A área do deck é também a casa do dominó nos dias longos. Duas pequenas varandas nas laterais ainda dão espaço a mais redes. Uma portinha é a do camarote. A outra, da cabine de comando.
Bússola, medidor de temperatura do motor, rotação, pressão do óleo e um marcador de milhagem não muito condizente com a idade do barco - estão lá apenas 5.670 milhas navegadas. No teto, uma alça para manejar o holofote à noite. Manete de aceleração e leme completam a pouca parafernália que Valderi, o piloto, e Rafael, o marinheiro, têm à disposição.
Até o fim de janeiro, Kukahã vai percorrer mais de mil quilômetros até o rio Boia. Dali em diante, a equipe parte em voadeiras para entrar nos igarapés. Depois é pé na mata.
Solimões, um rio mais traiçoeiro que o mar
Rio muda de feição a cada passada: os bancos de areia se movem pelo leito sem que se percebaRoberto Almeida, enviado especial à Amazônia
sexta-feira, 4 de dezembro de 2009, 19:01
O Kukahã roncou durante 12 horas. Trajeto em ziguezague para desviar das toras que povoam o Solimões, cortadas rio acima, no Peru. O piloto Valderi e o marinheiro Rafael se revezaram no leme, desde a saída de Tabatinga às 14h30 do dia 1º de dezembro e a chegada a São Paulo de Olivença, às 4h do dia 2.
O tempo de viagem era para ser mais curto, não fosse um rápido temporal, de meia hora, que fez com que o chefe da expedição, Rieli Franciscato, pedisse para acostar na margem. Medo de um vento forte contra a corrente do rio, que poderia causar um "banzeiro" - ondas de até um metro, sem direção, que causariam danos à embarcação.
A parada no posto fluvial da Polícia Federal no Solimões também tomou uma hora da viagem. Os agentes da PF trabalham ali, na beira do rio, em um barco improvisado para coibir a entrada de drogas no País, vindas do Peru e da Colombia. Quem passar sem parar é perseguido e averiguado.
Com a documentação em ordem, seguimos viagem a não mais que 10 km/h. A noite caiu, com lua coberta pelas nuvens, e o único guia nesses casos é um grande holofote, no teto do barco, operado pelo piloto. Acende, ilumina os troncos, apaga o breu assume seu lugar.
Navegar no Solimões é mais perigoso do que no mar, garante Rieli. O rio muda de feição a cada passada, as "praias" ou bancos de areia invisíveis para o leigo se movem pelo leito sem que ninguém veja. O rio não tem canal de passagem definido. O calado do Kukahã tem 1m20 e é fácil encalhar.
Valderi sabe disso há 19 anos. Foi de copiloto pela primeira vez quando tinha 17, hoje tem 36 e diz que levou pelo menos 4 anos para pegar no leme a primeira vez. Olhando e ouvindo as instruções dos mais velhos, aprendeu todos os truques do rio, que engana quem bobear.
Rafael, o marinheiro, tem apenas 20 anos. É sua primeira vez no Solimões. Ele conhece bem o Jutaí, afluente rio acima, mas ainda é novato no desvio dos troncos. Se também levaria 4 anos para aprender? O garoto respondeu de pronto: "Uma vez só tá mais que bom."
A paisagem homogênea da Amazônia verde na margem, marrom na água, negra no céu só é cortada pelos pescadores e poucas casas de ribeirinhos. É época da piracema, mas uma concentração de cerca de 20 voadeiras perseguia cardumes com seus motores de 5 HP.
O jantar saiu com galinha ensopada, arroz, salada e duas garrafas de guaraná. As redes coloridas tomaram conta da área comum do barco. Seis horas depois, São Paulo de Olivença não passava de algumas luzes na margem do Solimões.
Ali, os galos já cantavam e os mosquitos carapanãs esperavam o barco atracar para fazerem a festa.
Os sonhos da Floresta Amazônica
Causos e histórias da floresta, contados por seus habitantesRoberto Almeida, enviado especial à Amazônia
sexta-feira, 4 de dezembro de 2009, 19:11
Txami Matis não precisou ser perguntado para começar a contar causos de onças de sua aldeia, no rio Ituí. O clima era propício. A noite caiu, com céu estrelado, e somente a luz do piso inferior do barco iluminava de baixo para cima seu rosto. A cena ainda ganhou um toque extra de suspense porque o rosto de Txami é adornado por pedaços de madeira e tatuagens, que garantem aos matises o apelido de homens-onça.
A roda de conversa, protagonizada por Txami, contava com o piloto Valderi, o marinheiro Rafael e o mateiro Wilson Kanamari. O índio matis se divertia ao contar as histórias, falava com pompa. A primeira foi de um parente de Txami, que corria na floresta atrás de uma anta para caçar. E, sem querer, pisou em cima de uma onça, que estava escondida na mata. O susto foi tão grande que o parente se desequilibrou, mas conseguiu escapar. E deu risada.
A segunda teve sangue. Outro parente de Txami plantava macaxeira quando foi mordido na cabeça por uma onça, e está no hospital em Manaus. Em detalhes, o matis explicou que a fera começa a comer a vítima pelo pescoço, e rói dali para dentro do tórax em busca do coração e do fígado. Aí Txami já não riu tanto.
Na terceira, foi causo de patada. Parente de Txami caçava macacos com uma zarabatana quando sentiu uma garra arranhar o ombro e descer pelo braço, rasgando o músculo. Mas se salvou.
Wilson Kanamari aproveitou o embalo e, de sua voz estancada, saíram mais histórias de onças de Remansinho, sua aldeia no rio Itaquaí, dentro da Terra Indígena Vale do Javari.
Na sequencia, Txami e Wilson começaram a falar das consequencias dos causos de onça. Os pesadelos.
Índios não precisam do conto de fada da Chapeuzinho Vermelho para saber que não dá para tomar o caminho errado na floresta. A realidade da Amazônia é mais que suficiente para povoar o inconsciente de imagens de perigo.
E então vêm as elaborações dos causos de onça em forma de sonho. À noite, os sons da floresta excitam a imaginação, e o resultado é previsível: alguns acordam suando, com medo, ou até gritando.
O marinheiro Rafael garante que esses dias sentiu uma onça roçando o lado direito de sua rede à noite. Não conseguiu mais dormir. O ticuna Misael acordou resfolegando, achando que o barco estava afundando.
Mas a história mais tragicômica foi contada por Txami. Um mateiro acordou aos berros, achando que macacos estavam lhe arrancando os testículos.
Visita 'rápida'
Tédio toma conta do caminho, homogêneo, mas o trajeto é tranquiloRoberto Almeida, enviado especial à Amazônia
domingo, 6 de dezembro de 2009, 18:04
Depois do almoço no dia 2, a saída de voadeira. Chuva veio umas três vezes no caminho. A primeira foi a mais forte delas. Quando começava a secar, vinha outra para encharcar. E faltavam ainda 400 quilômetros até o destino, o Posto Indígena de Vigilância e Proteção da Funai (Pivip), no rio Jandiatuba.
Por volta das 16 horas, a tarrafa caiu na água. Duas dúzias de peixe vieram e estava garantido o jantar e o almoço do dia seguinte. Uma hora depois, parada no tapiri do "seu Chico", à beira do rio, para montar acampamento.Chico não estava lá para contar história. Seu tapiri tem 9 m2, teto de sapê, duas faces de madeira, duas totalmente abertas. A lenha foi cortada e o fogão foi montado para cozinhar os peixes. Uma boa quantidade de jaraquis.
Escuridão total, 20h30 todos dormindo que no dia seguinte 3h50 todo mundo de pé, desmontar acampamento, tomar café com pão, fritar o resto dos peixes para comer no almoço. Às 6h30, o Jandiatuba de novo.
Tédio toma conta do caminho, homogêneo, mas o trajeto é tranquilo. Ao meio-dia, sem parar o barco, almoçar o peixe. Agora não falta muito, mas o sol queima e o perigo de insolação cresce.
Com a voadeira pesada, o chefe Rieli decide esconder no mato galões de gasolina, marcados com GPS, para buscar depois, na volta. E serviram para reabastecimento.
No fim da tarde aparece a base do Jandiatuba. Seis quartos, sala de TV, refeitório e mais instalações. Equipe passa ali dois meses a fio, com 10 dias de folga. Anderson "Popeye", um deles, pescava e trouxe caldeirada para o povo. A TV com parabólica hipnotizou até que dormir não era opção.
Dia seguinte, sexta-feira 4, todos de pé, café com pão, e José, o outro mateiro, terminava de preparar um barco novo. Fácil seria não fosse ataque de piuns, mosquitos minúsculos, que deixam bolha de sangue na picada.
As horas correram na passada de piche, no arrastar do casco para a água e na tentativa de colocar motor. Não deu certo, pesou, e o barco empinou demais.
Bom que foi tranquilo, porque no sábado 5 a equipe levantou às 3h para voltar ao barco parado. Às quatro na voadeira. E pelas 13 horas seguintes, sem parar, ela riscou o Jandiatuba com sol e com chuva até reencontrar Kukahã.
Dados sobre o trecho:
Tempo total de viagem
30 horas
Distância percorrida
830 km
Lixo, escambo e futebol no caminho da mata
Durante a tarde toda, o radinho de pilha pegou rádio AM para ouvir a rodada final do BrasileirãoRoberto Almeida, enviado especial à Amazônia
domingo, 6 de dezembro de 2009, 21:09
No pôr do sol, 10 facões foram limados e esmerilhados no barulho agudo que contrastou com o ronco do motor. Kukahã que ficou por quatro dias parado no rio Jandiatuba agora tem voz, ganhou vida e voltou ao Solimões para sair só dezembro 7, na cidade de Jutaí.
Gado pastando, lixo no leito. Garrafas plásticas, chinelos, carteiras de cigarro, lixo no Solimões em frente às cidades. Foi assim também às 15h de Santo Antônio do Içá, às 17h quando deixou Tonantins para trás.
Seu Fernando, de péc-péc, ou canoa movida a motorzinho 5HP, encostou no Kukahã com pressa para vender macaxeira, limão, pimenta, milho e peixinho mandi. Barba branca olho azul, diz que veio do Ceará. Pediu troca por "combustol", o diesel que move seu péc-péc.
Na canoinha, menino e menina, só de bermuda e calcinha, pisavam a água marrom. O garoto trepou no Kukahã, foi advertido por seu Fernando e desceu rápido, pendurado pelo braço.
O chefe da expedição, Rieli, não sabia quanto valia a troca no balde de macaxeira, na panela de pimenta com limão. Seu Fernando só dizia "vê quanto o senhor pode me dar." Depois não resistiu e cobrou. "Vê 10 litros do 'combustol' que paga." Pagou.
Macaxeira se misturou com a carne do almoço, e a viagem seguiu rumo a Jutaí. Facão na lima, depois no esmeril para entrar na mata no fim de dezembro.
Parada brusca só no fim da tarde, com o sol caindo, quando balsa cheia de gás pediu por socorro. Motor quebrou. Na camaradagem do Solimões, o piloto Valderi ofereceu ajuda e logo foi empurrar. Mais de mil botijões parados no rio que foram para a margem, esperar por um socorro maior.
E durante a tarde toda, o radinho de pilha pegou rádio AM para ouvir a rodada final do Brasileirão. Metade do barco, assim como metade do Amazonas, é rubro-negra. Sofreu com o gol do Grêmio, vibrou com a virada e gritou na levantada do caneco. Kukahã virou Flamengo até que o chefe lembrou a todos que é palmeirense. E que ficou fora da Libertadores.
A base do Jandiatuba
Objetivo é coibir entrada de pescadores, caçadores e traficantes no lado leste da Terra Indígena Vale do Javariquarta-feira, 9 de dezembro de 2009, 18:43
Amazônia - O Posto Indígena de Vigilância e Proteção (Pivip) do Jandiatuba é o mais novo dos três geridos pela Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari. Foi instalado em 2007.
O Pivip fica no rio Jandiatuba, afluente da margem direita do Solimões, que corta a porção leste da Terra Indígena Vale do Javari.
O objetivo é coibir a entrada de pescadores, caçadores e traficantes. Funcionários disparam alarmes e usam voadeiras para perseguir infratores, que buscam especialmente a carne do pirarucu, em extinção.
Nas instalações permanecem pelo menos quatro pessoas que vigiam a área. Nos arredores, em uma área de 20 quilômetros ao sul, já há registros de malocas e roças de índios isolados, não-contactados.
Os funcionários permanecem lotados na base durante 60 dias. E ganham folga de 10 dias para voltar para suas famílias.
No princípio era o jenipapo
De onde veio o homem, para etnia ticuna? O mateiro Misael conta a históriaRoberto Almeida, enviado especial à Amazônia
quinta-feira, 10 de dezembro de 2009, 16:25
De onde veio o homem, para etnia ticuna? No princípio, era o jenipapo.
Dois espíritos irmãos, um bom e um ruim, perambulavam na Terra. O bom tinha mulher, o ruim não. Quando bom saiu para caçar, ruim tratou de fazer filho nela.
Só que irmão bom voltou, viu mulher grávida. E decidiu se vingar.
Criança nasceu com ordem superior de o irmão ruim pintar ela com raspa de jenipapo. Quando subiu na árvore para pegar o fruto, o bom lançou feitiço: jenipapo e irmão traiçoeiro seriam a mesma coisa.
Assim que começou a raspar o jenipapo sobre a criança, irmão ruim raspava a si mesmo. E como era preciso obedecer ordem superior, ele se raspou todo, até acabar.
Para se livrar do irmão ruim de vez, irmão bom jogou as raspas de jenipapo no rio. E elas viraram peixe-gente. Gente ruim.
E assim se dividiram as pessoas. Filho que irmão bom teve depois com a mulher viraram gente boa. E gente ruim foi pescada no rio.
"Ticuna que bebe, usa droga e briga, esses tem até marca de anzol no beiço", disse Misael.
QUEM SÃO OS TICUNAS
A etnia ticuna é a mais numerosa do oeste do Amazonas. São mais de 30 mil índios que vivem em diversas comunidades. Uma das maiores é a de Umariaçu, colada na cidade de Tabatinga.
Eles vivem em aldeias, mas vida do não-índio da fronteira com Peru e Colômbia está muito próxima. Assim como o álcool e as drogas. Alguns ticunas são usados de mula para transportar cocaína.
Na equipe da Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari há dois ticunas: o mateiro Misael e o ajudante de campo Jeremias, que é mestiço.
A ferroada
Na pisada em falso, arraia não perdoou. Deixou um buraco na canelaRoberto Almeida, enviado especial à Amazônia
quinta-feira, 10 de dezembro de 2009, 17:02
JF Diório/AE - Wilson Kanamari é socorrido após "esporada" de arraia
Foi na aldeia kanamari Remansinho, na beira do rio Itaquaí, dentro da Terra Indígena Vale do Javari.
Na pisada em falso, arraia estava em baixo e não perdoou. Ferroada deixou buraco na canela, inchou tudo até o joelho e não deixava Wilson andar.
Passou tempo sem tomar remédio, ferida aumentou. Mas a ferida agora que é tratada com iodo dentro de Kukahã. Em volta, esparadrapo, gaze e algodão.
Arraia é comum, e está em tudo quanto é rio. Tem várias espécies, mas essa Wilson não sabe dizer qual era.
A lição que fica é que na amazônia não dá para pisar em falso, como fez o kanamari.
Expedição flagra garimpo ilegal no rio Boia
Balsa e equipamentos são encontrados próximos ao rio e há indícios de que o local foi deixado recentementeRoberto Almeida, enviado especial à Amazônia
sexta-feira, 11 de dezembro de 2009, 16:13
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