Cidadãos de Terceira Classe

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A reação da indiazinha foi instintiva. Quando se viu diante da câmera, juntou as mãos em sinal de oração. Pastores protestantes e religiosos católicos continuam o trabalho de arrebanhar fiéis entre os índios. Durante a colonização brasileira, em nome de salvar almas teve início o genocídio dos habitantes originais do Brasil.

Perto de Dourados, em Mato Grosso do Sul, 11 mil índios vivem confinados em 3.600 hectares de terra. É um doloroso exemplo de como o Brasil continua matando os índios, desta vez aos poucos.

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O pai de Madalena, Vânio Lara, é terena. Mudou-se para a cidade em busca de dar vida melhor aos filhos. Os índios da etnia a que ele pertence já ocuparam grandes extensões de terra. Sem futuro na aldeia, Vânio foi para a periferia de Campo Grande. Com outros índios, promoveu a invasão de um loteamento.
Quer para ele, agora, 450 metros quadrados.

O pai de Madalena é sortudo. Conseguiu emprego numa das poucas empresas da cidade que empregam índios. Bêbados e vagabundos, é como muitos moradores da região se referem aos índios.

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Fátima é agente de saúde da FUNASA, órgão federal encarregado de cuidar da saúde dos índios. Cuidar é modo de dizer. Por sorte, a FUNASA tem gente como Fátima na folha de pagamentos. Ela é guarani-caiowá, assim como os outros 32 agentes de saúde que trabalham nas aldeias da periferia de Dourados.

Consegue se entender com os índios no idioma deles e sente na pele o sofrimento de seu povo. Fátima e colegas botaram a boca no trombone quando os indiozinhos começaram a morrer. Foram mais de 20, de dezembro de 2004 a abril de 2005. As estatísticas são "mascaradas", para fazer parecer que os indiozinhos não morrem de desnutrição. Os óbitos são registrados como resultado de pneumonia, diarréia e desidratação.

Vindos de Brasília, burocratas "preparam" os números. Dizem que uma criança morreu de fome em janeiro e nenhuma em fevereiro. "Portanto, reduzimos em 100% as mortes por desnutrição", foi o que me disse um cara-de-pau.

As terras da aldeia perderam a cobertura vegetal e estão desgastadas. Os índios vivem como miseráveis, em casebres. Falta água limpa e energia elétrica.
Como eles não têm instrumentos, sementes ou assistência técnica, saem da aldeia para trabalhar em usinas de açúcar da região. Quem diria, os índios acabaram como bóias frias. Vivem em alojamentos. Os donos de usinas descontam do salário o que os índios consomem. Os preços da comida são inflados, para reduzir o ganho dos indígenas. Eles ficam mais de dois meses no corte de cana, sem voltar para casa.

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Deixam para trás mulheres que têm em média cinco filhos para cuidar. É esta a engrenagem que provoca desnutrição das mães, baixo peso dos bebês ao nascer e a fraqueza que mata as crianças. Uma orientação da Procuradoria da República proíbe que médicos receitem anticoncepcionais ou falem sobre planejamento familiar com as mulheres das aldeias.

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A enfermeira brinca com uma criança indígena no Centrinho, um centro de recuperação de indiozinhos desnutridos mantido pela Igreja Presbiteriana. É um trabalho louvável, mas depois de recuperadas as crianças voltam para as aldeias miseráveis. Os adolescentes ficam perdidos entre a cultura de origem e a atração exercida pela cidade. Bicicletas e rádios são objetos de desejo dos indígenas.

O álcool e, mais recentemente, as drogas, são os anestésicos para o desespero. Há uma estimativa segundo a qual centenas de índios cometeram suicídio nos últimos dez anos. Tudo isso acontece à sombra da prosperidade de Dourados, uma das capitais do agronegócio. Qual será o futuro dos índios brasileiros?

A Universidade Dom Bosco, de Campo Grande, promove uma experiência inovadora. Na aldeia Capaaró, colocou 100 dos 800 indiozinhos da escola para estudar em tempo integral. Os meninos recebem 50 reais de mesada, do governo do Estado, para gastar como quiserem - desde que continuem freqüentando a escola. Aprendem técnicas tradicionais de cultivo e a tomar conta das criações. Também têm aulas de informática e seguem o currículo das escolas dos brancos.

O objetivo do projeto é fazer com que os adolescentes permaneçam na aldeia, cultivando as terras e preservando o que sobrou da cultura dos guaranis. As famílias dos estudantes são as mais pobres da aldeia. Ficam com os ovos, as verduras, legumes e frutas produzidas no projeto. Todos os professores são indígenas. Existe um projeto para criar uma faculdade para formar os índios em agroecologia.

Da viagem a Mato Grosso do Sul a recordação mais tosca foi a de funcionários do governo tentando aparecer diante da câmera. Eram quatro horas da tarde e, sob um sol escaldante, eles distribuíam aos índios sobras de um restaurante de comida a quilo de Dourados. Também deram leite longa vida a algumas

famílias, certos de que ajudavam a combater a desnutrição. Eu é que dei o alerta: como os índios não têm geladeira, o leite teria que ser consumido de uma só vez. Caso contrário, poderia provocar diarréia e agravar a situação dos indiozinhos esfomeados. Da aldeia dá para ver as terras cultivadas do agronegócio, na vizinhança. A fartura da região de Dourados contrasta com a miséria dos indígenas.

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via Vi o Mundo
(Publicado originalmente em 2006 e reeditado em 13 de janeiro de 2007)