Marielle e Monica: uma história de amor interrompida

Monica BenicioImage caption'As coisas foram muito atropeladas. Ainda nem comecei a viver o luto', diz mulher da vereadora Marielle FrancoEra 7 de janeiro de 2017. Marielle Franco tinha acabado de tomar posse como vereadora pelo PSOL no Rio, seu primeiro mandato legislativo. No entusiasmo daquele ano que começava, ela e sua parceira, Monica Benício, acompanhavam o show da sambista Mart'nália no Circo Voador, na Lapa.

Marielle esperou começar Namora comigo, música especial para as duas, e abriu a mão de Monica, colocando no meio de sua palma uma aliança.

"Ela estava realizando um sonho da minha vida quando fez isso", conta Monica. "Era a realização de uma história que foi interrompida muitas vezes, mas nunca sem o desejo de ser vivida."

Com a voz embargada, ela acena com a cabeça para confirmar que, sim, o bonito anel com pedras de granada em que vinha mexendo ininterruptamente durante a

Monica nos recebe na casa em que ela, Marielle e sua filha, Luyara, viviam juntas havia apenas um ano e três meses, em uma vila na Tijuca, na zona norte do Rio.

Mudaram-se para lá na mesma época do pedido de casamento, enfim consolidando uma história de amor iniciada quando ainda eram jovens, mas interrompida inúmeras vezes pelas dificuldades que enfrentaram ao assumir um relacionamento entre duas mulheres.




Monica Benicio e Marielle FrancoDireito de imagemMARCUS FAUSTINI
Image captionMonica e Marielle tinham planos de se casar em 2019 e cogitavam a hipótese de um filho


Na noite de 14 de março, Monica esperava por Marielle como sempre fazia, acendendo velas e incenso em casa para criar um ambiente acolhedor que compensasse as pautas pesadas com que a companheira lidava no trabalho.

Marielle havia acabado de avisar por mensagem que já estava a caminho de casa quando foi brutalmente assassinada com quatro tiros na cabeça, no bairro do Estácio. O ataque que matou a vereadora de 38 anos e seu motorista, Anderson Gomes, de 39 anos, ainda está sendo investigado.

A entrevista às vezes é interrompida por lágrimas, mas Monica segue em frente. Fala com firmeza sobre o que considera ter sido um crime político contra a parceira, sobre as tentativas subsequentes de difamá-la com notícias falsas na internet e sobre o temor de que sua morte seja usada para reforçar argumentos em prol da intervenção federal na segurança pública no Rio. Para ela, isso seria um segundo crime contra Marielle, crítica feroz da intervenção.

Monica diz que pretende fazer o possível para "honrar a memória e o trabalho dessa mulher extraordinária". Mas, antes, precisa "conseguir sobreviver" ao assassinato de Marielle - o grande amor de sua vida. "Nesse momento, a minha única luta é pela sobrevivência."
Mãe preta, mãe branca

Monica veste uma camiseta branca com o desenho do rosto de Marielle. Em um adesivo pregado do lado esquerdo do peito, se lê: "Marielle Vive!".

Quem entra na vila dá de cara com o mesmo adesivo, colado no centro do portão de ferro pichado. Um longo corredor de concreto dá acesso a casas de classe média. As casas da favela do Morro do Salgueiro, visíveis ao fundo, não estão muito longe dali.



Casa de Monica e Marielle
Image captionNa parede de casa, um mural pintado por Monica traz dois ícones femininos, Frida Kahlo e Angela Davis, e São Jorge, de quem Marielle era devota


Ao ver o cachorrinho de estimação da casa, a repórter, querendo saber se deveria perguntar pelo nome "dele" ou "dela", pergunta antes se é macho ou fêmea. "É macho, mas aqui não tem essa coisa de gênero, não", diz Monica de bate-pronto. Vez por outra sua personalidade espirituosa se expõe em meio ao luto, assim como o jeito para fazer piadas enquanto mantém o rosto impassível.

"O nome dele é Maddox. Ele é preto e branco, porque é filho de mãe preta e mãe branca. Isso é importante", diz, abrindo um sorriso.

Na parede da sala, um mural pintado por Monica traz dois ícones femininos, Frida Kahlo e a ativista afro-americana Angela Davis, e São Jorge, de quem Marielle era devota. Na mesa abaixo, um retrato antigo mostra Monica, Marielle e Luyara ainda menina.

Monica a conheceu quando Luyara tinha 5 anos e, desde então, começou a tratá-la como filha. Hoje com 19 anos, Luyara está na casa dos avós, em Bonsucesso, onde tem dormido desde que Marielle morreu.

Como figura pública, Marielle não economizava declarações de amor e postagens com selfies sorridentes ao lado da mulher nas redes sociais, geralmente seguidas do hashtag #M2 - uma referência às iniciais do casal - e #nossasfamiliasexistem.



Marielle, Luyara, MonicaDireito de imagemARQUIVO PESSOAL
Image captionMonica conheceu Luyara, a filha de Marielle, quando a menina tinha 5 anos e, desde então, começou a tratá-la como filha


"Não tem outra maneira de sintetizar o que se vivia aqui que não afirmar que nossas famílias existem e que isso era uma configuração familiar. Quer parte das pessoas e da sociedade aceitem isso ou não."

A afirmação, sempre reiterada por Marielle, vai contra a proposta do Estatuto da Família, um polêmico projeto de lei que busca definir a "entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher".
Preconceito

Monica tem 32 anos, é arquiteta e, assim como Marielle, é uma "cria da Maré", como sempre repetia a vereadora ao contar que nasceu e cresceu no enorme complexo de favelas na zona norte do Rio.

Como a companheira, ela mantém a ligação com a Maré atrelada à vida profissional. Em mestrado na PUC-Rio, vem estudando como a violência influencia a relação de jovens dali com outros espaços da cidade.

Monica e Marielle se conheceram quando tinham 18 e 24 anos, respectivamente, numa viagem de Carnaval com um grupo de amigos para a Praia de Jaconé, em Saquarema (RJ).

"Tivemos um ano de relacionamento como amigas até entender que aquilo era mais que amizade. Por influência religiosa e pelo contexto em que vivíamos, não entendíamos bem o que estava acontecendo. Até que um dia aconteceu um beijo", lembra Monica.

"As histórias foram acontecendo, foram se intensificando e fomos nos vendo cada dia mais apaixonadas."



Monica Benicio e Marielle Franco na MaréDireito de imagemARQUIVO PESSOAL
Image captionAmbas nasceram e foram criadas no Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio


Durante os primeiros sete meses, não contaram para ninguém sobre o namoro. E já estavam juntas havia dois anos quando assumiram de vez a relação.

"Quando a gente assumiu para a família, foi rejeição para todos os lados. Foi muito difícil. Você não tem auxílio na rua, entre amigos, e quando mesmo a família não te dá suporte, o mundo vira um lugar bastante complicado."

Isso foi mais de dez anos atrás, época em que "nem na Lapa era razoável ver duas mulheres andando de mãos dadas", lembra Monica, referindo-se ao bairro carioca com a vida noturna mais agitada e plural da cidade, e aos próprios amigos, católicos como Marielle e que também resistiram à relação das duas.

"Éramos duas mulheres que não se encaixavam no estereótipo do que rotulavam como sapatão. Havia riscos na favela. Era perigoso. 'Vocês gostam de mulher porque não conheceram homens de verdade'. 'Você nunca conheceu um peru de verdade.' Ouvimos isso muitas vezes. Às vezes, vinha de amigos mesmo. Mas, quando vinha de estranhos, era amedrontador. Além de tudo, temíamos a possibilidade de um 'estupro corretivo'."

A pressão ao redor, ao lado de dificuldades financeiras, acabou colocando o relacionamento em xeque. "A gente terminou muitas vezes, voltou muitas vezes." Monica teve relacionamentos com outros homens e outras mulheres; Marielle, com outros homens. "Buscar relacionamentos com homens era uma forma de simplificar a vida. Eram histórias mais fáceis de se viver."
'Leoa com armadura'

A reaproximação definitiva veio quando Marielle estava pensando em se candidatar para a Câmara dos Vereadores e quis saber a opinião de Monica. Não teve a resposta que queria ouvir. Monica disse ter certeza de que ela faria um trabalho "belíssimo" e que teria seu voto. Porém, de uma perspectiva pessoal, não queria que ela se candidatasse.

"Conheço a Marielle que não é a Marielle que grita, que não é a Marielle que bota o dedo na cara dos outros, que não é a Marielle que tenta parar o caveirão (como são conhecidos os carros blindados usados pelo Bope). E, conhecendo essas fragilidades, sabia que ela teria uma vida muito difícil."

Marielle, porém, já estava decidida - e a parceira deu seu apoio.




Monica Benicio e Marielle Franco em uma cachoeiraDireito de imagemARQUIVO PESSOAL
Image caption'Éramos opostos complementares', diz Monica


"Era o lugar dela. É o lugar das leoninas, o centro dos holofotes", considera. "A Marielle tinha luz própria. Não precisava de palco, de microfone, de nada disso para chamar atenção. Era dessas pessoas que os outros percebem quando entram na sala."

As duas estavam em relacionamentos firmes, mas reataram pouco antes de a campanha começar. A relação, agora, era mais madura, entre duas mulheres e não mais meninas, diz Monica - ainda alternando o presente e o passado para falar da companheira.

"Ela é leonina, e eu sou aquariana, são opostos complementares. Sou extremamente metódica, organizada, racional; ela trazia muita emoção. Isso gerava um equilíbrio harmonioso", conta.

Monica diz que só uma coisa mudou em Marielle ao se eleger: "Ela me convenceu a deixá-la comprar mais roupas", ri. Seu guarda-roupa era "um carnaval" de estampas e cores vibrantes. As unhas estavam sempre pintadas cada uma de uma cor. E era Monica quem separava suas roupas de manhã.

"Ela era sempre muito atarefada. Se deixasse, saía com tudo da mesma cor. Eu ficava nervosa", conta, orgulhosa de "assinar como autora" do estilo da companheira.

Dentro de casa, Marielle era muito diferente da "leoa com armadura" que o mundo conheceu, diz Monica.

"Eu tenho a impressão que ela pendurava a armadura do lado de fora quando chegava e vestia de novo quando saía", afirma. "Aqui, precisava de afeto, de carinho, queria ser cuidada e cuidava também. Era muito bonito. Tínhamos muita cumplicidade."
'Ingenuidade'

Monica não tem dúvidas de que o assassinato de sua mulher - "muitíssimo bem executado, de forma fria, no meio de uma via pública" - foi um crime político.

Os temas delicados com os quais a vereadora lidava reforçam a convicção. Marielle denunciava brutalidade policial e violação de direitos humanos em favelas do Rio. Falava abertamente, mas não sofrera ameaças, e o casal não temia represálias.

"Nesse sentido, acho até que a gente beirava uma certa ingenuidade. A gente nunca teve receio por qualquer fala ou denúncia. Era o trabalho dela, sabe? Ela nunca falou de ameaças ou de um medo real de risco de morte. Isso nunca fez parte das nossas conversas."



Monica Benicio em manifestação na Maré
Image captionMonica diz que as manifestações realizadas no Brasil e em cidades no mundo todo para a Marielle 'dão força'


Para Monica, o assassinato foi um crime "contra a democracia". Ela diz que mais importante do que descobrir quem matou Marielle é descobrir quem a mandou matar.

Marielle fazia críticas veementes à intervenção federal anunciada pelo presidente Michel Temer no dia 16 de fevereiro. Havia sido nomeada relatora de uma comissão formada na Câmara dos Vereadores para monitorar as ações do gabinete coordenado pelo interventor, o general Braga Netto.

Após o crime, o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, afirmou ao jornal O Globo que o assassinato poderia ter sido planejado "para confrontar ou abalar a intervenção", levando o crime a reagir.

A afirmação foi vista pelo deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ), padrinho político de Marielle, como uma tentativa de usar a morte da vereadora para justificar a intervenção, acusação negada por Jungmann. Para Monica, isso equivaleria a um segundo crime contra a companheira.

"A sensação de segurança que pode ser produzida com a intervenção é só para a zona sul (a área mais abastada do Rio) e o asfalto. Para quem está na favela, ela é mais medo, mais terror, mais dor, mais morte, mais sangue. A intervenção em nada pode ser justificada a partir do que aconteceu à Marielle. Seria mais um crime contra sua memória."
Difamação

A comoção produzida pela morte de Marielle nas redes sociais foi seguida de uma onda de notícias falsas sobre a vereadora, espalhando boatos de que teria sido eleita com dinheiro do tráfico e defendia bandidos, entre outros.

Monica evitou contato com tudo isso. Tirou os jornais da porta de casa pouco antes da reportagem da BBC Brasil chegar, intocados. Tem evitado ver TV, ouvir rádio, entrar nas redes sociais. Se amigos contam sobre boatos, pede para pararem no meio. Só pede que lhe enviem "as coisas que forem bonitas".

"A Marielle era uma defensora pelo direito à vida e à igualdade. Coisa que a nossa sociedade não permite para pobre, não permite para negro, não permite para favelado", diz Monica.




Monica Benicio e Marielle FrancoDireito de imagemARQUIVO PESSOAL
Image captionMarielle não economizava declarações de amor e postagens ao lado da mulher nas redes sociais


"Vemos nossos jovens negros na favela morrendo diariamente, porque a sociedade insiste em um discurso ignorante de achar que defender direitos humanos é defender bandido. É importante estudar um pouco para não falar tanta besteira, com tanta irresponsabilidade."

Monica e Anielle Silva, irmã de Marielle, pediram na Justiça que vídeos difamatórios sobre a vereadora sejam retirados do YouTube. Já obtiveram uma vitória parcial, com ordem para a remoção de 16 vídeos. Monica diz que vão continuar lutando.

"Nenhuma mensagem difamatória a respeito da Marielle será tolerada. E isso diz respeito não só à responsabilização da plataforma, mas também daqueles que publicaram e compartilharam. Quando se faz uma publicação difamatória, tem sangue na mão de todo mundo", afirma.

Viúva da Marielle

Nos dias seguintes ao assassinato de Marielle, houve críticas nas redes sociais de que a mídia não estaria entrevistando a sua viúva, como se fosse uma tentativa de ocultar a relação homossexual (e não uma espera imposta pelo luto). Monica diz não saber nem o que dizer a respeito.

"As coisas foram muito atropeladas. Ainda nem comecei a viver o luto. Ainda acho que, no fim do dia, a Marielle vai chegar em casa. Não consegui absorver a ideia de que a minha mulher não volta mais."

Monica diz que as manifestações realizadas no Brasil e em cidades no mundo todo para a Marielle "são bonitas e, de certa forma, dão força". "Porque a gente vê que o trabalho dela fez e vai continuar fazendo diferença", diz.



Marielle e MonicaDireito de imagemARQUIVO PESSOAL
Image caption'O mundo inteiro está vendo que Marielle não pode ser calada. E não será', diz Monica


"Mas eu trocaria todas essas coisas, todas essas manifestações, e, de forma bem egoísta, até o símbolo importantíssimo que ela já está se tornando para o mundo, para tê-la em casa no final do dia", afirma.

Os planos para o casamento eram para 2019, escapando da loucura de mais um ano eleitoral. Marielle estava prestes a se lançar como vice-governadora pelo PSOL-RJ, em chapa formada com seu companheiro de partido, o vereador Tarcísio Motta.

O casal também pensava em ter mais uma criança, desejo compartilhado por Luyara. Mas ainda não havia consenso de quem deveria engravidar. Monica diz não ter vontade de gerar, e Marielle já se considerava velha para tal. "Era um plano que seria pensado depois do casamento."

Ao contrário do preconceito enfrentado pelo casal na juventude, Monica diz que as fotos que postavam juntas nos últimos tempos sempre recebiam palavras de apoio, nunca comentários homofóbicos. "Se dependesse da Marielle, ela postava uma selfie romântica de nós duas por dia. E eu falava: 'É bom a gente postar coisas de trabalho também, né?'"

Ultimamente, ela diz que sair com Marielle era como estar com uma celebridade, com pessoas pedindo fotos e abraços em restaurantes, na rua, na fila do cinema. "Esse afeto lhe dava força. Mostrava que seu trabalho estava sendo respeitado e fazia diferença na vida das pessoas. Era muito importante para ela."

Vendo Marielle alçada a símbolo internacional, Monica diz que sua imagem pode ser afastada das causas que defendia, mas não acredita que isso vá acontecer. "Distanciar a sua imagem do que foi a sua luta vai ser um trabalho muito mais difícil do que foi calar a Marielle", considera.

"O mundo inteiro já está vendo que ela não pode ser calada. E não será."

* publicado na BBC Brasil, com colaboração de Rafael Barifouse, em São Paulo

Eu me mudei para o Complexo da Maré, que reúne 16 favelas do Rio de Janeiro, onde ainda me encontro nesta madrugada de 22 de março, quinta-feira. Queria sentir o povo daqui e pedi abrigo ao fotógrafo AF Rodrigues, que, com sua mulher, Elisângela, me acolheu amorosamente em casa. Precisava entender como essa comunidade produziu Marielle Franco, hoje o nome mais comentado no mundo, a vereadora de mandato popular, mulher associada à luta, à guerra e à paz; a negra que levou a favela para a Câmara Municipal do Rio de Janeiro.

Só no ano passado, o território da infância e juventude de Marielle foi palco de 108 eventos cravejados de balas. Em 41 deles, as armas de fogo foram disparadas em operações policiais. Outros 41 decorreram de confrontos entre facções do crime organizado e 26 se deram fora de embates, ou seja, a carnificina foi promovida por um único grupo.

O sangue correu pelas ruelas, e o povo desse local chorou sobre 42 corpos, além de cuidar de 57 feridos. Em média, um mareense tombou sem vida a cada nove dias. O mesmo povo do lugar cria muitas alternativas de ajuda e sobrevivência. Marielle era fruto disso, também protagonista da resistência que se faz aqui.

Para entender Marielle, precisei da ajuda de Monica Tereza Azeredo Benicio, arquiteta, 32 anos. Também cria da Maré, ela é mestranda da PUC e está pesquisando como a violência pode interferir na relação do cidadão com o seu local de moradia, resumindo rapidamente. Em Monica fui buscar a melhor definição de Marielle da porta para dentro. Da Marielle mulher –a mulher que Monica amou desde os 18 anos.

Eu me apresentei pelo WhatsApp. Por três dias, trocamos mensagens. Monica, sempre firme e ao mesmo tempo delicada, permitiu que eu me aproximasse. O problema era o acúmulo de atribuições e demandas que ela, embora tão doída e chorosa, precisava administrar. Na terça-feira, por exemplo, passou muito tempo prestando depoimento na delegacia de polícia que investiga a execução covarde de Marielle sete dias antes. À noite estava no ato público na frente da Câmara Municipal. Desde o assassinato de Vladimir Herzog não se via uma celebração ecumênica tão emocionante e sensível, juntando uma multidão para ouvir pastores, um rabino, padres, representantes das religiões de matrizes africanas e do islamismo.

De carona na moto do fotógrafo, fui conhecer Monica nas proximidades da Vila do João, que pertence à Maré. Percorri fronteiras que dividem as áreas dominadas pelos grupos que se enfrentam e deixam marcas de rajadas de projéteis nas paredes. Vi como são alegres as crianças indo à escola ou vindo dela, apesar de toda a truculência. E fiquei pensando que entre elas pode surgir outra Marielle.

Monica está sofrida, mas íntegra. Conversamos por quase duas horas; depois ela se entregou às lentes de AF, outro menino nascido na Maré. Foi Monica quem sugeriu o local do nosso encontro. Disse que me receberia na casa que dividiu com seu amor, na Tijuca, mas preferia mostrar os lugares delas na Maré. Nós nos abraçamos no pátio da Igreja Nossa Senhora dos Navegantes. “Foi aqui que vi Marielle pela primeira vez”, me contou Monica.

Era Carnaval, um grupo de jovens que frequentava a igreja sairia de viagem, numa van, para a Praia de Jaconé, em Saquarema (RJ). “Primeiro, entrou no pátio a Luyara, que tinha apenas 5 anos”, lembra Mônica. “Ela veio na minha direção. Eu levava um bichinho de pelúcia que a atraiu. Comecei a brincar com Luyara no chão e logo apareceu Marielle. Eu levantei a cabeça e dei de cara com o sorrisão dela. Vi sua luz. Uma luz forte. Foi um impacto. Na van, demos um jeito de sentar juntas e, na casa da praia, dividimos o mesmo quarto. Não aconteceu nada ali de erótico. Mas nós nos grudamos, fizemos todos os passeios juntas. Ela precisou voltar antes de terminar o Carnaval, porque tinha que trabalhar. Fui com ela e Luyara até a rodoviária e choramos muito na despedida, como se não pudéssemos viver longe. Nossa amizade cresceu, fui morar na casa dos pais dela para ficar mais perto da escola, mas continuávamos nos relacionando com rapazes. Tinha um estranhamento, um ciúme; no entanto a gente não se dava conta. Um ano depois, aconteceu um beijo. Ficamos assustadas. Parecia que aquilo não estava certo. Marielle era catequista, muito ligada à igreja. As nossas famílias não aprovariam. Havia o machismo da favela e o preconceito de todos contra nós.”

O que se seguiu foi, de fato, tudo o que elas previam: rejeição, condenação dos amigos, dos vizinhos, e os homens insinuando o estupro corretivo para que não voltassem a pensar em sexo com mulheres.

Monica contou abertamente o que enfrentaram, das inúmeras vezes que se separaram. Até que, para tomar a decisão mais difícil de sua vida, Marielle precisou ouvir Monica e foi procurá-la. Ambas estavam em um relacionamento firme; ela com uma mulher, Marielle com um companheiro.

Marielle revelou que cogitava disputar as eleições municipais, de 2016, e queria saber a opinião dela. Monica foi sincera. Respondeu que, conhecendo o lado frágil daquela leoa brava – que chegava em casa, fechava a porta e desabava –, era contra Marielle se candidatar. Mas, como cidadã, tinha certeza de que faria um grande mandato e votaria nela.

O relato de Monica, às vezes interrompido por lágrimas, é sobre uma grande história de amor e de opostos que se completam. “Marielle adorava os holofotes; eu queria estar longe deles. Tinha uma força pública, um talento para isso, mas não conseguia organizar a vida prática, a rotina. Eu punha as despesas da casa em planilhas, cuidava do que íamos comer, criava um ambiente calmo com velas no quarto. Tudo para segurar um pouco a onda brava que ela vivia na política”, diz.
No domingo passado, elas inaugurariam um jardim na casa de vila que montaram. Em setembro próximo, casariam no civil –estavam orçando os serviços e poupando dinheiro para uma festa. Pensavam em filhos… mas esbarravam na dúvida: “Quem de nós vai gerar?”.
A entrevista completa estará publicada na edição de abril da revista CLAUDIA. Devo confessar que fiquei embargada duas vezes durante a conversa. Uma delas foi ao ouvir Monica explicar que, mesmo não sendo uma líder, não tendo a força e o carisma da companheira, vai fazer de tudo para levar as investigações até o final, com punição aos homens que tiraram dela a mulher, o grande amor – e arrancaram do povo pobre uma brava leoa que urrava para defendê-lo. Disse mais: que tomará para si a missão de não deixar o legado de Marielle ser esquecido. Nesse momento, a entrevistada, abatida, se tornou grande e eloquente. Eu me vi diante de uma mulher que está para descobrir como é longo o seu fôlego. E como permanece inteiro o seu desejo de seguir vivendo. #

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