"A Cidade Perdida de Z"

Afinal, o Eldorado existia mesmo


Os cuicuro num dos seus rituais mais sagrados, em honra dos mortos


A Cidade Perdida de Z



Descobrir a personagem que foi o coronel Fawcett, o último grande explorador romântico da Amazónia, leva-nos numa aventura que é ao mesmo tempo literatura de viagens de arrepiar e descoberta do mais recente pensamento sobre a América pré-colombiana. Eis "A Cidade Perdida de Z"
Afinal, o Eldorado existe. Mas em vez de ser de ouro resplandecente está coberto pelo verde da floresta do Parque Natural do Xingu, no Brasil, e só começou a ser visível na última década, graças às novas tecnologias que permitem estudar a Terra a partir do céu com um pormenor nunca antes imaginado. Se o coronel Percy Fawcett soubesse disto, ele que foi o último grande enfeitiçado pelo mito da civilização perdida na Amazónia. talvez não tivesse desaparecido, sem deixar rasto, em 1925, no inferno verde em que tinha aprendido a viver quase tão bem como um demónio nativo.
O nome se calhar não lhe diz nada. Mas Fawcett foi um dos últimos grandes exploradores do século XX, não do Pólo Norte ou do Pólo Sul, ou dos desertos de areias escaldantes, mas da floresta mais cerrada da Amazónia - primeiro, com a missão de cartografar fronteiras entre a Bolívia e outros países, seguindo o curso de rios tributários do Amazonas, o maior em termos de caudal do planeta, para a Royal Geographic Society britânica. Depois, como entusiasta da antropologia, ciência que dava os primeiros passos no início do século. Ele era um misto de visionário iluminado, com ideias à frente do seu tempo, e de visionário apenas, obcecado com o sonho de descobrir no século XX as enormes e ricas cidades de que falavam os "conquistadores" espanhóis que primeiro puseram pé nas Américas.

As aventuras na selva de Fawcett, amigo de Arthur Conan Doyle, serviram de inspiração para a história deste, "O Mundo Perdido" (1912), em que num planalto inexplorado da América do Sul se encontra um local onde os dinossauros sobreviveram. É na sua vida (sobretudo nos seus diários de expedição) que se baseia "A Cidade Perdida de Z", do jornalista da revista "New Yorker" David Grann. Concentra-se em Fawcett, o último dos intrépidos exploradores vitorianos (um bocadinho já fora do seu tempo), e na sua demanda por "Z", como ele intrigantemente chamava ao que outros antes dele chamavam Eldorado.

Enfeitiçado pela selva

Fawcett não estava cego pela busca de ouro, como os espanhóis que foram dos primeiros europeus a pisar o Novo Mundo. Ele tinha era sido enfeitiçado pela selva, um inferno verde de onde conseguia escapar sempre sem grandes doenças - e como são fantásticas essas doenças, desde vermes que crescem incessantemente dentro do corpo e espreitam por feridas que não saram nunca, a febres várias, passando por abelhas microscópicas que são atraídas pela humidade dos olhos. Enfim, pelo menos um dos círculos do Inferno podia ficar preenchido apenas pelos insectos que povoam o mundo fechado e verde da floresta amazónica, de onde nem se vê o Sol, por ser tão cerrada a vegetação. Como é que ali poderia alguma vez ter havido civilizações que se comparassem às dos incas, no topo dos Andes? Nunca naquela terra cheia de vida mas ao mesmo tempo tão hostil à vida se poderia imaginar que tivesse havido civilização complexa, com milhões de habitantes, algo semelhante ao que relataram os primeiros "conquistadores" espanhóis.

Pelo menos era isso que se pensava no início do século XX, e que se continuou a pensar até há pelo menos 30 a 40 anos. Descobertas permitidas graças a avanços na tecnologia - sobretudo as que transportaram os olhos do homem para o céu, e outros truques para além dos sentidos humanos, como os radares inventados com a II Guerra Mundial, ou o Sistema de Posicionamento Global (GPS).
Só na última parte do livro de Grann chegamos a perceber que a procura de Fawcett, afinal, se tornou hoje um tema de investigação científica - uma busca de provas concretas de que a civilização amazónica pré-colombiana existiu mesmo. E não era apenas uma cidade, era um complexo de cidades e outras povoações mais pequenas, organizadas em torno de praças redondas e ligadas por estradas muito direitas e seguindo orientações astronómicas, como as dos equinócios, e pontos cardeais.
Quem lhe conta, em páginas demasiado breves, o que a ciência descobriu, vigando as teorias do desaparecido Fawcett (e outros), foi o arqueólogo Michael Heckenberger, da Universidade da Florida, adoptado pelos índios cuicuro. Quando Grann o encontrou, o arqueólogo vivia com os índios há 13 anos - tanto tempo que já tinha a sua própria cubata numa aldeia do Parque Indígena do Xingu, no norte do Brasil. Heckenberger poderia lembrar o coronel Kurtz do filme "Apocalyse Now", de Coppola, mas é um cientista a sério, com publicações nas mais respeitadas revistas científicas, onde relata as descobertas que tem feito na selva ao longo da última década.

Em 1492, quando Colombo chegou à América, o que encontrou foi uma floresta virgem ou um parque cultivado, ajeitado às necessidades dos milhões de pessoas que lá viviam - esse era o título de um artigo que Heckenberger publicou em 2003, na revista "Science". Ele defende a segunda hipótese, e tem provas para o demonstrar, que aliás mostrou a Grann, quando o nova-iorquino quarentão que nunca tinha sequer acampado foi para a selva, na zona de Mato Grosso, tentando desvendar o mistério do que terá levado ao desaparecimento de Fawcett.
"Começou a caminhar outra vez pela floresta, apontando o que era, claramente, os restos de uma enorme paisagem feita pelo homem", relata Grann, depois de Heckenberger o ter feito ver um desnível que afinal era um fosso "de há cerca de 900 anos", um lugar que parecia "ser um fosso dentro do fosso" e na verdade era onde ficava uma paliçada que rodeava a povoação, ali ao pé da aldeia cuicuro onde ainda hoje vivem índios.

Floresta urbanizada

"Havia uma praça circular gigantesca onde a vegetação tinha carácter diferente da do resto da floresta, porque outrora tinha sido limpa. E tinha havido uma zona de habitações dispersas, como se provava por um solo preto ainda mais denso que fora enriquecido pelo lixo decomposto pelos dejectos humanos" (pág. 308). Em poucas linhas, Grann fala da "terra preta" tão diferente do solo empobrecido de grande parte da floresta, e que tem sinais claros de ter sido produzida pela actividade humana, descreve as descobertas dos últimos dez a 20 anos que fizeram mudar a forma como os arqueólogos olham para a Amazónia - não uma floresta intocada pelo homem, mas um "habitat" por ele modificado, com estradas, caminhos elevados e pontes, canais e até tanques de aquacultura.

Pelo menos numa zona que fica algures entre o Mato Grosso brasileiro e Llanos de Mojos, na Bolívia, uma planície entalada entre as montanhas dos Andes e a floresta amazónica, onde também há vestígios de uma ocupação sofisticada do espaço, com montes que podem ter servido de terras agrícolas ou refúgios para as inundações que se seguem ao degelo nas montanhas, na Primavera, dizia uma reportagem publicada em Fevereiro de 2000 também na revista "Science".

No ano passado, em Agosto, Heckenberger, e uma equipa que incluía vários cientistas brasileiros e pelo menos um índio cuicuro, voltou a falar das últimas descobertas feitas na zona onde Fawcett tinha a certeza de que encontraria a sua misteriosa "Z". O conceito que introduzem os arqueólogos e outros cientistas essenciais para esta investigação, que inclui até satélites, é o de que a Amazónia antes de Colombo era uma "floresta urbanizada", uma paisagem modificada pela acção do homem, que escolheu umas plantas sobre outras, e onde podem ter sido domesticadas espécies que ainda hoje fazem parte da alimentação básica dos que ali vivem, como a mandioca.

"Quando eu e a minha equipa começámos a cartografar tudo, descobrimos que nada era feito por acidente. Todos estes povoados eram instalados segundo um plano complicado, com um sentido de engenharia e matemática que rivalizava com tudo o que estava a acontecer em grande parte da Europa do tempo" (pág. 309), disse o arqueólogo da Universidade da Florida ao jornalista que via "Z" surgir da floresta. "Gostavam de ter belas estradas e praças e pontes. Os seus monumentos não eram pirâmides, razão pela qual foram tão difíceis de encontrar; eram características horizontais. Mas não eram menos extraordinários." (pág. 310).

Foi só no fim da sua viagem pelas aventuras e muitas desgraças das missões de Fawcett - e dos aventureiros que se propuseram ir para a selva para descobrir o que lhe teria acontecido, a ele, ao filho e ao amigo do filho, em 1925 - que David Grann descobriu que "Z", afinal, estava hoje a ser descoberta por muitos cientistas, aos bocadinhos, com o recurso a meios aéreos que no tempo de Fawcett eram praticamente impossíveis e tecnologias como radares que penetram o solo para descobrir o que está por debaixo da terra, sensores remotos para detectar campos magnéticos no solo, fotografias de satélite e tantas, tantas outras coisas para além dos pedaços de cerâmica que Fawcett descobria por toda a parte na selva, onde viviam as tribos que não tinham sido ainda aculturadas e destruídas pelo contacto com os brancos.
"Durante um momento, consegui ver esse mundo desaparecido como se estivesse à minha frente Z", confessa Grann.


via Ípsilon

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