Crónica: "Atrás de uma borboleta azul" por Marina Silva

por Marina Silva, de Brasília (DF)


Florestas não são apenas estatísticas. Nem apenas objeto de negociações, de disputa política, de teses, de ambições, de pranto. Antes de mais nada, são florestas, um sistema de vida complexo e criativo. Têm cultura, espiritualidade, economia, infra-estrutura, povos, leis, ciência e tecnologia. E uma identidade tão forte que permanece como uma espécie de radar impregnado nas percepções, no olhar, nos sentimentos, por mais longe que se vá, por mais que se aprenda, conheça e admire as coisas do resto do mundo.
Vivi no seringal Bagaço, no Acre, até os 16 anos. Tenho pela floresta muito respeito e cuidado. Quem conhece a mata, não entra de peito aberto, mas com muita sutileza. Ali estão o suprimento, a proteção e os perigos. E também o mistério, algo não completamente revelado. Vidas e formas quase imperceptíveis. O encontro, a cada momento, de um cipó diferente, uma raiz, uma textura, uma cor, um cheiro. A descoberta dos sons. Até o vento na copa das árvores compõe melodias únicas, de acordo com a resistência oferecida pela castanheira, a samaúma, o açaizeiro.
Na minha infância, o som que achava mais bonito era o do período da florada das castanheiras. A castanheira é polinizada por uma abelha
enorme, o mangangá. Imaginem centenas de mangangás entrando nas flores para tirar o néctar! Como a flor é côncava, na hora de sair têm que fazer uma força extraordinária nas asas, num vôo de frente pra trás, que provoca um barulho de máquina potente e rouca. Uma de minhas primeiras lembranças do mundo é do barulho dos mangangás na copa da castanheira ao lado do terreiro da nossa casa.
Embora para muitas pessoas a floresta possa parecer homogênea, sempre a vi como espaço de diversidade. Gostava de prestar atenção em pequenas coisas, como formigas levando folhas para o buraco. O caminho das formigas era bem limpinho, parecia varrido. A estrada de seringa era cheia de folhas, tocos, raízes, de espera-aí, um espinho de rama que arranha a perna quando a gente passa. E eu imaginava como seria bom ter uma estrada de seringa limpa como o caminho das formigas!
Outra formiga, a tucandeira, tem uma ferroada tão dolorosa que não dá nem para explicar. Mas havia também uma razão mítica pra temê-la. Meu tio Pedro Mendes, que durante muito tempo conviveu com os índios do Alto Madeira, dizia que as tucandeiras viravam cipó de ambé. Se morresse uma na copa da árvore, o corpo virava a planta e as pernas viravam os cipós. Quando se era mordido de tucandeira, a primeira coisa a fazer era procurar um cipó de ambé, cortar e beber a água porque ela era o antídoto. Não sei se era mesmo, mas ajudava a aliviar a dor.
Meu tio ensinava coisas em que a gente acreditava profundamente. Ele dizia que se a gente se perdesse e visse uma borboleta azul, era só segui-la que ela nos levaria para a clareira mais próxima e de lá acharíamos o caminho de casa. Essa borboleta é linda, enorme, quase do tamanho da mão. Nunca vi um azul igual. Que, aliás, é marrom. Os pesquisadores do INPA descobriram que ela tem uma engenharia de disposição das escamas das asas que faz com que, na incidência de luz, se tornem azuis.
Depois entendi porque nos levava para casa. Porque gosta de pousar em frutas como banana e mamão maduros, já bicadas pelo passarinho pipira. Quando sente fome, procura a primeira clareira onde haja um roçado de frutas. E lá perto, certamente haverá uma casa. São coisas que parecem crendice, mas há conhecimento científico associado, obtido pelo mesmo princípio do método acadêmico: observação sistemática dos fenômenos.
Antes de existir Ecologia como ramo do conhecimento ou ambientalismo como movimento, o sistema da floresta já tinha suas normas, o seu ‘Ibama’ natural, sua sustentabilidade, por meio de um código mítico que funcionava como legislação de proteção da mata e das formas de vida que a habitavam. Não se podia pescar mais do que o necessário, porque a mãe d´água afundaria a canoa. Não se podia caçar demais porque o caboclinho do mato daria uma surra. Não podia matar animal prenhe porque a pessoa ficaria panema, ou seja, sem sorte. E para tirar o azar seria preciso um ritual tão complicado que era preferível deixar o bicho em paz.
As práticas de acesso aos recursos da floresta, mediadas por esse código mítico, acabavam levando a um alto grau de equilíbrio. Só se caçava quando acabasse a carne seca pendurada no fumeiro do fogão. Logo, se não se podia caçar em excesso, não havia carne para venda, só para o próprio consumo. Contrariada essa norma, o caboclinho do mato castigaria o infrator com uma surra de cipó de fogo com nó na ponta. A pessoa apanhava mas não conseguia se defender porque não via a entidade. Ficava toda lanhada, com febre. Até o cachorro, se acuava uma caça desnecessária, começava a pular e ganir de dor. Era o caboclinho disciplinando o animal.
Os relatos eram inúmeros e me deixavam com muito medo de andar pelo mato. Superava-o, em primeiro lugar, cumprindo à risca as leis míticas. Além disso, desde criança tenho uma fé imensa e achava que, sendo justa com a natureza, Deus me protegeria.E mesmo com todo esse medo, minhas irmãs e eu gostávamos de andar pela floresta porque lá a gente se divertia muito. Por exemplo, fazendo balanço de um cipó muito resistente, em árvores que chegavam a trinta metros de altura. Pescar nos igarapés, colher bacuri, abiu, taperebá, ingá, tucumã, cajá, era muito bom.
Era um mundo de sabedoria tradicional, de organização social e cultural inseparável da existência da floresta. Até que um dia chegaram as motoserras e tratores e desconstituíram os códigos míticos, criando a necessidade crescente do aparato legal que, por não estar dentro do homem, precisa de instituições e mecanismos para implementá-lo. Não foi à toa que a primeira grande operação de combate a desmatamento feita pela Polícia Federal, envolvendo 480 agentes, no estado de Mato Grosso, foi batizada de Operação Curupira. Se abríssemos hoje nossa sensibilidade para os valores da floresta, talvez se tornasse mais fácil redefinir o que entendemos por qualidade de vida.
Quem sabe, pode estar faltando uma enorme borboleta azul para nos conduzir para casa, onde os frutos de nossas decisões sempre nos aguardam em mesa farta.


* Marina Silva é professora secundarista de História, senadora pelo PT do Acre e ex-ministra do Meio Ambiente.
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