Sobre os Povos Indígenas do Acre


“Por diversas razões, há poucos dados seguros a respeito dos povos indígenas da região atual do Acre. O território dos cursos superiores dos afluentes da margem direita do Amazonas foi explorado relativamente tarde, de modo que os índios dessa região, então praticamente desconhecida, raramente foram mencionados nas fontes mais antigas ou receberam atributos fantásticos. O Pe. Cristobal d‘Acuña registrou, por exemplo, a lenda de que no Purus (ou rio Cachiçuará) viviam índios gigantescos, os Curiquerês, que se enfeitavam com folhas de ouro e traziam anéis de ouro no nariz e nas orelhas. No mapa do “Rio do Omopalens” - o Purus -, realizada por Guillaume d‘Isle da Academia Real das Ciências, em 1703, tais gigantes são denominados Mutuanis, eles habitariam a dois meses de marcha a pé da embocadora daquele rio. Enquanto que se supunha haver gigantes no Purús, acreditava-se que no Jurúa viviam anões e homens com rabos. Ainda na descrição do Pará de Antonio Ladislau Monteiro Baena, publicada em 1832, pode-se constatar a permanência de tais lendas: os índios anões seriam os Caunás, os com rabos os Uginas. Ao lado de tal etnografia fantástica havia também uma geografia marcada por hipóteses: supunha-se que o Purús, famoso pela sua riqueza (salsaparilha, cacao, tartarugas, óleo, peixes), tinha as suas fontes nas alturas da cidade de Cuzco. Este vínculo com Cuzco também era suposto no caso do Juruá, pois admitia-se que teria sido esse o rio da viagem de Pedro de Orsua e Lopo de Aguirre, provenientes do Peru.
Na região dos cursos superiores do Juruá e do Purus, de acordo com as fontes conhecidas, não houve nenhuma missão no periodo colonial. Spix e Martius mencionam, no início do século XIX, que não seria possível pensar em catequização de índios nesse território. É porém difícil afirmar com segurança se esses povos tiveram ou não contactos indiretos com as missões, sobretudo através de indígenas cristianizados provenientes de outras aldeias no século XVIII, uma vez que essas regiões de difícil acesso serviam como territórios de refúgio. A história missionária não pode seguir, no caso, fronteiras nacionais estabelecidas posteriormente. Os jesuítas desenvolveram intenso trabalho missionário no Equador ao redor de 1700. Também as missões espanholas peruanas estavam particularmente ativas nessa época. Para essas aldeias eram levados também indígenas do Brasil, inclusive índios já cristianizados. Mencione-se aqui o povo Marahua, em parte já catequizado e que vivia nos afluentes do Javari e do Juruá.
A artificialidade da divisão política colonial e pós-colonial da região, com penetração por todos os lados, torna difícil toda e qualquer classificação da população indígena segundo perspectivas nacionais. Assim, as tribos regionais, na sua maioria, pertenciam até o início do século XX à Bolívia e, em parte, ao Peru, precisando ser consideradas no contexto histórico desses países, em cuja formação cultural os índios desempenharam um papel muito mais determinante do que no Brasil. Pelas suas características naturais, essa região situava-se porém mais distante dos territórios centrais da Bolívia do que dos restantes territórios de floresta dos afluentes da margem direita do Amazonas, uma vez que há uma continuidade natural entre as partes inferiores e superiores dos rios. A consideração etnológica não pode, portanto, guiar-se pelas divisões nacionais e não pode perder de vista as relações com os indígenas dos países vizinhos da Bolívia e do Peru; ela também não pode considerar as etnias atuais do Acre isoladamente daquelas do Amazonas.


O complexo determinado pelos rios também é de importância fundamental para o estudo dos contactos culturais dos indígenas com a cultura de cunho europeu. Através desses rios, os índios já se encontravam no início do século XIX em contacto com comerciantes de produtos da floresta e que se utilizavam de índios integrados na sociedade brasileira ou de brasileiros de ascendência indígena como auxiliares e intermediários.
Segundo os dados de Spix e Martius, viviam nessa região os Purus-Purus (ou Purupurus) - que teriam dado o nome ao rio -, os Amanatis e os Ita Tapuias; todos seriam temidos pela sua selvageria e o comércio com eles se fazia sob a proteção de armas; a região tão rica em cacau e salsaparilha do Juruá seria habitada pelos Catauixis, Catuquinás, Canamarés e outros povos. Até mesmo esses renomados eruditos mencionam a existência de gente com rabos - os Coatá Tapuias no Juruá - e os anões: os Cananas. Ferdinand Denis, que também cita os Purupurus (Purus-Purus) e os Catauixis, salienta o significado da produção de borracha devido ao incremento da procura européia já no início do século XIX e remonta a origem da obtenção do leite da seringueira aos Omaguas; nessa época, os seringueiros seriam em grande parte indígenas.
Um quadro dos poucos conhecimentos a respeito dessa região e de seus habitantes oferecidos aos leitores interessados da Europa ao redor de 1860 encontra-se no relato de P. Marcoy. Esse viajante compara o estado da época com aquele de 1640 a 1680 e de 1850/51. Ele se baseia em artigo publicado em jornal de Belém (Telégrafo Paraense) de 1829, fundamentado em dados de Noronha e Sampaio (1750-1774). Marcoy reconhece a falta de exatidão dos dados, uma vez que até mesmo o rio Juruá aparece confundido com o Japurá. Para o período de 1640 a 1680, registrou os seguintes grupos indígenas no Juruá: Catahuichis, Cahuanas, Marahuas, Canamahuas, Yumaas, Camaramas, Payabas, Papianas, Ticunas, Nahuas e Culinos; para a região do Purus: Purus-Purus, Muras, Abacaxis, Maués, Sapupés, Comanis, Aytonarias, Acaraiuaras, Brauaras, Curitias, Catahuichis, Uarupas, Muturucus, Catukinos e Sehuacus. O autor menciona que, no ano de 1860, na embocadura do Juruá, viviam ainda famílias do povo Anahua (antes Nahua), no interior Catahuichis e no curso superior do rio Catukinos; para o Purus, registra alguns Muras e muito poucos Purus-Purus no curso inferior, assim como Catahuichis, Catukinos e Sehuacus rio-acima. No seu mapa dos afluentes não explorados do curso superior do Amazonas, Marcoy registra Sehuacus e Canamaris no curso superior do Purus, assim como Catukinos e Canamaris no Tarauaca e no Juruá. Em geral, esse catálogo oferece um quadro da população numericamente mais reduzida da população indígena do lado direito do Amazonas em comparação àquela do lado esquerdo. Demonstra assim, uma redução considerável do número de tribos mencionadas no decorrer do tempo.
Para a mudança da situação étnica nessa região no decorrer do século XIX contribuiram em primeiro lugar os conctactos ocorridos espontaneamente com índios integrados de todo ou em parte (tapuias) com comerciantes, na sua maioria de origem portuguesa, e os empreendimentos oficiais de descimento e aldeamento de grupos que viviam dispersos na floresta. As modificações mais profundas deram-se, porém com a imigração crescente de nordestinos. A procura de mão-de-obra na expansiva extração da borracha acarretou problemas. Talvez por essa razão, já em 1818, o último governador do Rio Negro, Manoel Joaquim do Paço, proibiu viagens pelo Purus. O Govêrno da província do Amazonas salientou numa circular às repartições oficiais, com indignação, que os índios do Juruá, do Purus e de outros rios não eram tratados como homens livres por aqueles que se dedicavam à extração da borracha, sendo às vezes forçados a esse trabalho; tal procedimento criminoso deveria ser severamente punido (Officio Provincial de 16 de julho de 1878). No decorrer da exploração crescente da região, o contacto com índios da área do curso superior do Juruá ocorreu mais tardiamente e de forma mais conflitante do que com aquelas do curso superior do Purus. A resistência indígena contra os invasores no curso superior do Juruá parece ser um indício da força das sociedades indígenas da região, ainda no começo do século XX.
Impressões a respeito das dificuldades que resultavam dos contactos e da convivência dos índios com os imigrados oferecem testemunhos da época da passagem do século. Para a área de divisa com a Bolívia, tem-se um desses retratos no relato de Albert Perl, um viajante e empreendedor alemão que visitou uma aldeia Pacaguara no Chipamanu, um dos formadores do Abunã. Ele salientou que, na época, dominava a idéia de que a tribo dos Guarayos ocupava a região do Madidi até o Madeira, passando pelo Madre de Dios, apresentando traços aparentados com os Caripunas e Pacaguaras. Ele, porém, pode constatar que nessa região ainda viviam vários outros grupos diferentes, de tipo não equivalente ao dos Guarayos. Na Barraca Carmen, deparou-se com um grande número desses últimos índios - cujo nome significaria “guerreiro” - e que teriam sido trazidos à força por uma expedição. Dos homens, apenas poucos sobreviviam e encontravam-se à beira da morte. Os índios caiam em apatia e tristeza, recusavam todo tipo de alimentação e morriam de fome.
Os grupos indígenas nessa região do início do século XX são tratados nos estudos que já podem ser considerados como clássicos de C. Tastevin e P. Rivet, publicados no órgão da sociedade francesa de geografia. Eles podem ser, em geral, ordenados em dois troncos lingúisticos: o Pano, falado por indígenas que vivem sobretudo no curso superior do Juruá, e o Aruak, falado por índios que têm a sua principal área de difusão no curso superior do Purus e afluentes. Na área do Alto Juruá, pode-se mencionar os seguintes grupos: Amahuaka, Aninawa, Kampa, Katukina, Kapanawa, Kasinawa ou Kaxinaua, Kontanaya, Koto, Kulina, Marinawa, Maseuruna, Naw ou Naua, Nukuini, Pakanawa, Poinawa, Remo, Saninawa e Sipinawa. As tribos do Alto Purus e afluentes eram: Contakiro, Imammari ou Imammali, Ipurinã, Kanamari, Kapecene e Maniteri”.

Fonte:
Antonio Alexandre Bispo, em “Etnologia do Acre: Índios e Imigrantes.” Sobre o Alto Purus, leiam no site do CTC: “Alto Purús: Biodiversidad, Conservación y Manejo”.
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